sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

CHEVETTE 78, eu em Afogados da Ingazeira

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Quando começou para valer a comunicação do I Encontro de Ex-funcionários do Banco do Brasil de Afogados da Ingazeira, no sertão do Pajeú em Pernambuco, eu fiquei recordando a minha ida para a cidade em janeiro de 1982. 

Lá cheguei em 09 de janeiro e já era noite, tomei posse na manhã de 11 de janeiro, já tendo como a primeira tarefa colocada pelo gerente adjunto Ronald Teixeira decorar a minha matrícula em cinco minutos e voltar até ele para declamar um dos meus números eternos (enquanto eu durar). Lá vai: 6804495X, "Repita rapaz"; 6804495X, ao ouvir pela segunda vez ele disse: "Decore, pois este número vai acompanhar você a vida toda." 

Pois bem, na chegada, no sábado, por volta das sete horas da noite eu tive que ir por um desvio até o centro de Afogados, pois a entrada principal estava interditada por causa do asfaltamento da rodovia. Após pegar o desvio, passei pela AABB e desci a ladeira, de repente eu parei o Chevette, branco, e olhei para a direita e vi uma luz enorme espelhada no "chão". 

Como já vinha desde que anoitecera achando que tinha um fantasma no carro, aquele "farol" me deu uma estranheza imensa. Passei um bom tempo tentando entender o que via, aos poucos eu fui acompanhando a réstia da luz, aquela calda grossa, tornando a luz bicuda de frente para trás, foi então que meus olhos brilharam, eu estava vendo um lindo luar espelhado nas águas da Barragem de Brotas.  Sim, eu vi um duplo e belo Luar do Sertão. Cabe poesia, mas eu vi literalmente e ela foi uma das melhores imagens que a minha memória guardou de todos os lugares em que passei na vida.

Bem, sapequei a primeira no Chevette e fui parar em um hotel perto dos Correios. Papai tinha me dado uma grana e eu havia também economizado uma parte da mesada que ele me dava, tinha um pouco de dinheiro. Havia completado 22 anos. Magro, cabelo grande, cheio de curiosidade e de medo. Seis anos atrás eu havia saído de casa para estudar e agora eu saia de vez do convívio da minha família.

E o Chevette?

Assim que saiu o resultado do concurso do Banco do Brasil, de 1981, eu não fui para Bom Conselho fazer a prova de datilografia. Péssimo datilógrafo eu demorei a fazer a prova. 

Quando estava definitivamente aprovado, com os primeiros papéis assinados com o Banco, meu pai me chamou de surpresa no meio da semana. Cheguei cedo e ao chegar em casa ele me disse: "Vá no Detran transferir o carro para você. Ele agora é seu." Fiz todo o trâmite e voltei para Recife no início da tarde. Pensava no presente, pensava como seria a minha vida dali para frente. Assim viajei 280 km.

Na época eu fazia Zootecnia na UFRPE e tinha dois colegas de São José do Egito, um rapaz e uma moça, irmãos. Não sei como, mas combinamos quando eu estivesse em Afogados iria visita-los em São José do Egito. Já naqueles primeiros dias em Afogados em travei uma boa amizade com Alcyr. Quando fui para visitar os colegas eu chamei ele. 

Logo na chegada em São José do Egito tomamos um susto imenso, fiz uma curva fechada que contornava o campo de aviação correndo um pouco mais que o limite e senti o carro levantar a roda do asfalto. Depois do perrengue, chegamos na casa dos colegas de Zootecnia. Bem, bebemos, bebemos, bebemos até quase acabar o sol.

Na volta, em um daqueles arroubos de bêbedo, com destemor (irresponsabilidade também) e com vontade experimentar que todo jovem tem, eu disse a Alcyr que queria ver até quanto o Chevette dava, pegamos uma ladeira em reta e eu empurrei o pé no acelerador. 155 km/h. Resumo: Chegamos inteiros em Afogados. Deus estendeu a mão sobre as nossas almas.

Quando chegou a Semana Santa eu convidei Alcyr para ir comigo visitar meus pais em Bom Conselho, distante uns 250 quilômetros. Desta vez a gente andou normal. Quando foi no final do domingo de páscoa a gente começou a viagem de volta, na altura de Arcoverde, talvez Cruzeiro do Nordeste Alcyr me pediu para dirigir o carro. Eu fiquei meio enciumado, mas terminei cedendo. Ele pegou o carro e tocou a viagem. Não sei direito que horas era aquela, dez da noite, onze horas, mas a temperatura já estava amena, fria para os padrões do sertão.

Seguimos na direção de Custódia, pois a estrada usual estava interrompida pelo asfaltamento da rodovia de Cruzeiro do Nordeste para Sertânia, tínhamos que pegar uma rodovia estadual que liga Custódia até Sertânia. Aquele trecho do sertão não tem montanhas, é uma estrada com elevações baixas, suaves, como são as curvas. Em certo momento, Alcyr, que vinha dirigindo devagar me perguntou: "O que é isso?" Eu olhei, os faróis de candeeiro do Chevette demoraram a iluminar aqueles vultos negros, mas a imagem se formou e creio ter tido: "Vacas". O tempo vai atrapalhar a minha memória, mas umas dez vacas grandes estavam deitados no asfalto. Na maior tranquilidade, nem se mexeram, contornamos elas e seguimos viagem. Creio que meia-noite a gente chegou em Afogados.

Tempos depois eu emprestei o carro e viajei para Recife. A capotada machucou bem o carro, o salário inicial no Banco do Brasil na época era pequeno. Dava com muito aperto para pagar a subsistência em Afogados e as minhas viagens para ver a namorada em Recife. Encostei o carro na Oficina do Magno e fiquei pagando a ele por mês. Cada mês eu dava uma grana e ele consertava uma parte. Lembro com clareza, que toda vez que eu saia do trabalho passava pela oficina e o via pelas grades, nem tinha coragem de me aproximar dele. Foram vários meses, até que a lataria ficou pronta. Ainda havia que fazer toda a tapeçaria. Que fiz muito tempo depois em Recife.

Bom, final de 1982 meu pai morreu. Em 1983, eu vinha da casa de Cida, hoje minha esposa, e parei o Chevette no Largo da Encruzilhada aqui em Recife. O sinal fechado, e eu planejando trocar de carro com a ajuda de papai, foi quando uma frase veio à minha mente: "Ele não está mais aqui." Adormeci a ideia e acordei para a realidade daquela circunstância.

Em meados de 1983 eu recebi a minha parte da herança dele, um pouco de dinheiro, uma parte de uma casa. Gastei mal, troquei o velho Chevette por um Passat usado. 

Muito meses depois eu me encontrei com o dono da loja onde havia trocado o Chevette pelo Passat e ele olhou para mim e quis confirmar apenas o que já sabia: "O teu carro foi deitado, não foi?" Dei um sorriso chocho e confirmei. Bem, foi a última vez que ouvi falar daquele Chevette 78. Um brinquedo de adulto que eu fazia questão de lavar e encerar semanalmente. 

Abraço e bom final de semana.

Marconi Urquiza





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