sexta-feira, 23 de abril de 2021

CHOPE CARAMELADO


Um xícara de café expresso, um chope escuro. Da incompatibilidade nasceu essa história.

Meio dado a falastrão, Querêncio chegou atrasado no futebol e ficou no banco. Viu os amigos correrem durante meia-hora. Entrou a segunda pelada e ele continuou esperando. Perdera a vez, havia agenda para a primeira pelada, mas seu atraso lhe jogou para o fim da fila.

Quando começou a jogar viu alguns amigos mais chegados indo embora. “Hoje não ter ninguém para tomar uma cerveja”. Os que estavam jogando com ele eram meros companheiros de peladas. O máximo de intimidade era o protocolar: “Como vai?”

Desejava contar a novidade que descobrira no Shopping Boa Vista. “Fica para depois, aquele quiosque tem vida longa com o seu chope saboroso”.

Após o final da pelada, ele tomou banho, arrumou as suas coisas para ir embora, mas caiu na tentação:

− Júnior, traz uma Origina gelada.

− Quantos copos?
− Só para mim, os amigos já foram – Querêncio respondeu com uma ponta de frustração na voz.
− Se o senhor vier na sexta, seu Valter costuma ficar para tomar duas cervejas.
− Beleza, vou chegar para a primeira pelada.
− Que aquele tira-gosto?
− Depois, mas hoje vou de espetinho. Tem?
− Frango, frango e queijo, carne e queijo.
− Tá bom. Quando eu pedir traga o de frango e queijo.

Deu um sorriso chocho, pois havia se lembrado do dono de uma galeteria de frango defumado, pois certa vez ao pedir um frango inteiro, foi corrigido por esse homem: “É galeto. Mas tem frango aqui, ali e lá dentro”. Pensou em dizer que ele era preconceituoso, mas deixou para lá.

Tomou a primeira cerveja, pediu a segunda. Tomou mas um copo e no final dele veio: “Puta merda, que chope bom aquele. Sábado vou lá tomar duas canecas”.

Chegou a sexta-feira e se ele se encontrou com Valter.

− Vamos tomar uma hoje?

− Vamos na quarta, amanhã vou viajar.
− Tá bem.

Péricles foi passando:

− Toma uma hoje?
− Tomo, até sete e meia.

Eles sabiam que a limitação de horário se devia a Lei Seca. Seis e meia da noite sentaram para aquele hora de bate-papo regado à cerveja. Lá pelas tantas, Querêncio disse:

− Vamos amanhã lá no Shopping Boa Vista tomar um chope?

− Quem sabe. Me liga amanhã cedo. De repente eu convenço a mulher de ir no supermercado sozinha.
− Tá bem, vou ligar.
− Pode ligar.

Cada um bebeu seu copo de cerveja. Mas agora era de Heineken. Na garganta de Querêncio desceu amargando, mas desceu gostosa.

− Essa cerveja bem gelada, como essa, é muito boa – comentou Péricles.

− É mesmo. Demorei a me acostumar com ela. Mas agora estou gostando. Só não aguento beber quando esquenta. O amargor aumenta muito.
− Só presta bem gelada – disse Péricles.
− Que comer alguma coisa? – Falou Querêncio.
− Não, daqui a pouco vou jantar.
− Beleza.

Querêncio sentiu que o assunto estava acabando. “Rapaz, vou cutucar ele, se não, nem chega na saideira”.

− Péricles, sabe esse chope do Shopping da Boa Vista?

− Sei.
− Olha, eu nunca havia tomado um como aquele. É bom demais!
− Eu gosto de chope, mas até agora para mim são dos todos iguais. Só muda a marca. Até um da Heineken que tomei em Santiago tinha gosto dos daqui, nem parecia com o gosto da cerveja.
− Não, amigo, esse é muito diferente, pois andei por outros lugares que vendem chope e o gosto é igual. Acho que a Brahma está experimentando um novo sabor.
− Será? Pode ser. – Péricles se lembrou das vezes que geriu programas pilotos de alguma melhoria no seu trabalho.

Terminaram aquele cerveja. Querêncio sentiu que Péricles estava para sair, então disse:

− A saideira?

− Só essa.

Beberam rápido. No estacionamento Péricles chamou Querêncio.

− Vamos, eu dou carona. O caminho para minha casa é o mesmo da sua.

Cinco minutos depois:

− Amanhã te ligo – disse Querêncio.

− Beleza.
− Até.
− Até.

No dia seguinte Querêncio ligou, mas Péricles não pode ir. Dez horas Querêncio chamou a esposa:

− Mirna, vamos no Shopping Boa Vista?

− Eu quero tomar um chope bom que tem lá. Chope escuro.

Meia-hora depois saíram, faltando dez para as onze horas da manhã, Querêncio chegava nos bancos altos do quiosque de chope.

− Quero um chope escuro.

Em minutos a caneca estava à sua frente. Com os lábio gulosos tomou um gole grande. “Tá diferente”. Terminou aquela caneca, pediu agora uma tulipa. O gosto não mudou. A decepção começava a chegar.

− Pode me trazer uma tulipa de chope claro?

− O senhor que algum petisco?
− Não, agora não.

A atendente colocou na sua frente o chope claro. Bebeu devagar tentando encontrar as “notas do sabor especial”. Tomou apenas a metade da tulipa e não se aguentou:

− Moça, trabalha aqui há muito tempo?

− Trabalho, um ano.
− Sabe o que é? Eu vim aui há uns dois meses e tomei um chope tão bom, mas tão bom que estou estranhando esse sabor.

− Não mudou nada. Olhe aqui – e mostrou os barris de chope.

− Tá. Acho que me enganei – evitou prolongar àquela conversa, pois não desejava passar por tantã.
− Moça, traga um pratinho de pão de queijo.

Aquecidos no micro-ondas, em um minuto os seis pães estavam prontos para serem degustados.

− Traga mais um chope claro e também a conta – pediu Querêncio.

O sabor marcante dos pães de queijo engoliu por um momento o sabor do chope e da sua lembrança.

Saiu do quiosque disfarçando a sua decepção. “Ainda vem que Péricles não veio. Ainda bem”. Um pouco depois se encontrou com a esposa.

− E aí?  Saciou a vontade?

− Não. Tô só de barriga cheia.
− Só?
− Só. O que vim buscar não tinha e parece que nunca teve.
− Vá!
− É, pela conversa da moça que atende tá tudo igual desde que ela começou a trabalhar lá.
− Ôh, Querêncio! O que você queria mesmo?
− O que eu queria? – Ele repetiu a pergunta um tanto alheio.
− Acorda, homem! O que vocês estava a fim?

Com um ar de sonhador, muito sonhador, respondeu:

− Do chope caramelado.

− Chope caramelado... E tem esse tipo?
− Um dia teve e eu bebi. Não tem mais. Vamos, dirija, estou cheio de chope.

Mirna saiu do estacionamento, pegou uma ruazinha, a Corredor do Bispo e foi dirigindo devagar por várias ruas estreitas cheias de carro dos dois lados. De relance olhou para o marido, viu que ele tentava achar a resposta do sonho do chope caramelado.

Mirna sinalizou e entrou à esquerda na Visconde de Suassuna. O trânsito no sábado estava tranquilo. Dirigia sem pressa. No sinal da Avenida João de Barros ela ouviu um murmúrio.

− Disse alguma coisa, Querêncio?

− Pensei.
− Saiu de sua boca umas coisas que não entendi.
− Deve ter saído.
− Certo. O que você pensou?
− Pensei... Pensei...
− Diz logo, homem!
− Vou dizer.

O sinal abriu e Mirna se concentrou em dirigir, só teria sinal um quilômetros depois e logo atravessariam a avenida mais movimentada do Recife.

Chegaram no Parque Amorim. O sinal Para cruzar a avenida estava fechado.

Mirna estava impaciente:

− Vai dizer ou vai ficar nesse suspense.

Um sorriso meio debochado apareceu no rosto de Querêncio antes dele falar.

− Olhe, a uns dois meses nós fomos no Shopping Boa Vista. Lembra que lanchamos e eu tomei uma enorme xícara de um café caro na São Braz? Lembra?

− Lembro.
− Você foi fazer umas compras e eu resolvi ver uma livraria. Depois de alisar os livros em sai e vi o quiosque de chope...
− E tomou um bocado de chope.
− Só tomei três. Vai querer arengar agora, é?
− Vai conta, estou curiosa.
− Tá. Cheguei lá, pedi um chope escuro e veio um sabor gostoso. Saboroso. Como diz esse povo que gosta de botar sabor café, um negócio de notas disso, notas daquilo. Pois bem, o meu chope tinha gosto de caramelo.
− Pronto, ouvi, mas você não me disse como esse chope estava com gosto de caramelo.
− Não tenho outra explicação. A minha boca misturou os gostos e transformou aquele chope em chope caramelado.
− Eita, que invenção! – Disse Mirna.

Querêncio apenas sorriu, desta vez feliz, pois havia sentido o sabor inigualável do chope caramelado. A sua iguaria única. Só quinze anos depois é que algum cervejeiro com gosto pelo café andava tentando inventar uma cerveja caramelada. Bem que poderia chamar Querêncio para ser degustador.

− Mirna, pode acreditar, foi uma invenção da boa.

O poder revela ou transforma uma pessoa?

  imagem: Orlando/UOL.            Um papo na última segunda-feira entre aposentados do Banco do Brasil que tiveram poder concedido pela empr...