Um
xícara de café expresso, um chope escuro. Da incompatibilidade nasceu essa
história.
Meio
dado a falastrão, Querêncio chegou atrasado no futebol e ficou no banco. Viu os
amigos correrem durante meia-hora. Entrou a segunda pelada e ele continuou
esperando. Perdera a vez, havia agenda para a primeira pelada, mas seu atraso
lhe jogou para o fim da fila.
Quando
começou a jogar viu alguns amigos mais chegados indo embora. “Hoje não ter
ninguém para tomar uma cerveja”. Os que estavam jogando com ele eram meros
companheiros de peladas. O máximo de intimidade era o protocolar: “Como vai?”
Desejava
contar a novidade que descobrira no Shopping Boa Vista. “Fica para depois,
aquele quiosque tem vida longa com o seu chope saboroso”.
Após
o final da pelada, ele tomou banho, arrumou as suas coisas para ir embora, mas
caiu na tentação:
−
Júnior, traz uma Origina gelada.
Deu
um sorriso chocho, pois havia se lembrado do dono de uma galeteria de frango
defumado, pois certa vez ao pedir um frango inteiro, foi corrigido por esse
homem: “É galeto. Mas tem frango aqui, ali e lá dentro”. Pensou em dizer que
ele era preconceituoso, mas deixou para lá.
Tomou
a primeira cerveja, pediu a segunda. Tomou mas um copo e no final dele veio:
“Puta merda, que chope bom aquele. Sábado vou lá tomar duas canecas”.
Chegou
a sexta-feira e se ele se encontrou com Valter.
−
Vamos tomar uma hoje?
Péricles
foi passando:
Eles
sabiam que a limitação de horário se devia a Lei Seca. Seis e meia da noite
sentaram para aquele hora de bate-papo regado à cerveja. Lá pelas tantas,
Querêncio disse:
−
Vamos amanhã lá no Shopping Boa Vista tomar um chope?
Cada
um bebeu seu copo de cerveja. Mas agora era de Heineken. Na garganta de
Querêncio desceu amargando, mas desceu gostosa.
−
Essa cerveja bem gelada, como essa, é muito boa – comentou Péricles.
Querêncio
sentiu que o assunto estava acabando. “Rapaz, vou cutucar ele, se não, nem
chega na saideira”.
−
Péricles, sabe esse chope do Shopping da Boa Vista?
Terminaram
aquele cerveja. Querêncio sentiu que Péricles estava para sair, então disse:
−
A saideira?
Beberam
rápido. No estacionamento Péricles chamou Querêncio.
−
Vamos, eu dou carona. O caminho para minha casa é o mesmo da sua.
Cinco
minutos depois:
−
Amanhã te ligo – disse Querêncio.
No
dia seguinte Querêncio ligou, mas Péricles não pode ir. Dez horas Querêncio
chamou a esposa:
−
Mirna, vamos no Shopping Boa Vista?
Meia-hora
depois saíram, faltando dez para as onze horas da manhã, Querêncio chegava nos
bancos altos do quiosque de chope.
−
Quero um chope escuro.
Em
minutos a caneca estava à sua frente. Com os lábio gulosos tomou um gole
grande. “Tá diferente”. Terminou aquela caneca, pediu agora uma tulipa. O gosto
não mudou. A decepção começava a chegar.
−
Pode me trazer uma tulipa de chope claro?
A
atendente colocou na sua frente o chope claro. Bebeu devagar tentando encontrar
as “notas do sabor especial”. Tomou apenas a metade da tulipa e não se
aguentou:
−
Moça, trabalha aqui há muito tempo?
−
Não mudou nada. Olhe aqui – e mostrou os barris de chope.
Aquecidos
no micro-ondas, em um minuto os seis pães estavam prontos para serem
degustados.
−
Traga mais um chope claro e também a conta – pediu Querêncio.
O
sabor marcante dos pães de queijo engoliu por um momento o sabor do chope e da
sua lembrança.
Saiu
do quiosque disfarçando a sua decepção. “Ainda vem que Péricles não veio. Ainda
bem”. Um pouco depois se encontrou com a esposa.
−
E aí? Saciou a vontade?
Com um ar de sonhador, muito sonhador, respondeu:
− Do chope caramelado.
Mirna
saiu do estacionamento, pegou uma ruazinha, a Corredor do Bispo e foi dirigindo
devagar por várias ruas estreitas cheias de carro dos dois lados. De relance
olhou para o marido, viu que ele tentava achar a resposta do sonho do chope
caramelado.
Mirna
sinalizou e entrou à esquerda na Visconde de Suassuna. O trânsito no sábado
estava tranquilo. Dirigia sem pressa. No sinal da Avenida João de Barros ela ouviu
um murmúrio.
−
Disse alguma coisa, Querêncio?
O
sinal abriu e Mirna se concentrou em dirigir, só teria sinal um quilômetros
depois e logo atravessariam a avenida mais movimentada do Recife.
Chegaram
no Parque Amorim. O sinal Para cruzar a avenida estava fechado.
Mirna
estava impaciente:
−
Vai dizer ou vai ficar nesse suspense.
Um
sorriso meio debochado apareceu no rosto de Querêncio antes dele falar.
−
Olhe, a uns dois meses nós fomos no Shopping Boa Vista. Lembra que lanchamos e
eu tomei uma enorme xícara de um café caro na São Braz? Lembra?
Querêncio
apenas sorriu, desta vez feliz, pois havia sentido o sabor inigualável do chope
caramelado. A sua iguaria única. Só quinze anos depois é que algum cervejeiro
com gosto pelo café andava tentando inventar uma cerveja caramelada. Bem que
poderia chamar Querêncio para ser degustador.
−
Mirna, pode acreditar, foi uma invenção da boa.
