sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O tapa do vento na cauda do avião


Pequeno manual contra medo de avião | Viagem e Turismo


Eu só me sinto seguro
com os pés rentes do
chão.
Um dia quase morri
Em um pequeno avião.
Vento na cauda batia
E eu rezando pedia
A Jesus a salvação.

Poema de Ademar Rafael Ferreira 

Não sei qual foi a sua maior aventura em uma viagem, passei por algumas: carro que quebrou no sertão da Bahia e a carona na caçamba de uma D20; Fusca empurrado no meio de um lamaçal nos confins do Amazonas; um cabrito transportado como bicho de estimação; uma manada de bodes invadindo um campo de futebol parando o jogo e por aí vai. No entanto, eu nunca vivi uma meia hora tão longa, como a que narrarei.

Cutucando os meus amados cadernos de inconfidências e de aperreios eu achei essa aventura, lá crua, agora eu dei uma enfeitada, pois voar baixo é bonito, se vê quase tudo, é quase como um drone, menos pelo ...

Era o ano de 1992 e eu fiz, junto com a minha família, a segunda das grandes viagens que empreendemos, pois sair do sertão potiguar rumo ao oeste do Amazonas, foi ir de um extremo ao outro. Cá beirava ao oceano Atlântico, escorregando do vale do rio Apodi, lá raspava os seringais do Acre.

O mês de março já estava para sair de fininho, deixei a turma em Caraúbas, no Rio Grande do Norte, e me mandei, primeiro para Manaus, depois de um breve estágio em Itacoatiara, por fim cheguei em Boca do Acre, do nome antigo: Santa Maria da Boca do (rio) Acre, Estado do Amazonas.

Depois de um mês distante da mulher e dos filhos, nós nos reencontramos em Manaus e daí seguimos, em um Boeing para Rio Branco, no Acre. Avião grande, trepidação pouca, estrada boa no céu de nuvens pouco carregadas.

Chegamos em um sábado no início da tarde. Era Abril, fazia um sol fabuloso, o calor deixava a minha pele com umas bolinhas de suor. Éramos três adultos e duas crianças, já tendo recebido uma dica de um colega, nos dirigimos ao box da empresa Táxi Aéreo Céu Azul, assim alugamos um avião monomotor, pois a estrada de Rio Branco até nosso destino estava intransitável.

O voo para Boca do Acre, a 226 quilômetros de distância, levaria cerca de trinta minutos.

Nos dirigimos para a pista e o asfalto de concreto estava ainda mais quente, era um calor infernal e uma umidade relativa do ar que fizeram crescer as bolhas de suor, que ficaram graúdas. A minha camisa estava ensopada, os rostos dos filhos avermelhados, puxávamos as maletas, três enormes.

O piloto nos levou até o avião. A primeira impressão foi de que o monomotor era novo, meio novo, para ser sincero. Estava com pintura recente. Chegamos no avião, acho que de quatro lugares. O aperreio foi para acomodar primeiro as malas, depois acomodar Quitéria, a nossa empregada, que era uma pessoa alta e corpulenta, depois Cida, Victor e Raphael se acomodaram. Demos um jeito e sentei na frente, mas o danado é que toda vez que o piloto mexia na direção, a do co-piloto batia nos meus joelhos e assim começou a viagem.

O piloto ligou o avião e ficou testando o motor, o calor interno estava derretendo todos nós, para amenizar ele pediu para manter a porta aberta, que ficava do meu lado. Assim ficamos vários minutos, quando se deu por satisfeito, começou a falar com a torre do aeroporto, naquela língua de sinais verbais, piorado pela estática do rádio, que estalava igual a milho de pipoca no fogo. 

Faltava a autorização da torre de comando do aeroporto para começarmos o voo, pois tinha uma avião grande pronto para iniciar a sua viagem. Autorizado, o nosso piloto começou a taxiar, ainda estávamos com a porta aberta, ele nem foi para o final da pista, aprumou o avião e olhou para a cabeceira. Lá longe, mas bem perto do aeroporto, vimos um rebuliço nas nuvens,  elas já faziam as suas piruetas, então ouvi o piloto dizer: "Vem uma chuva forte, se a gente não sair agora, a pista vai fechar", então ele acelerou e em segundos soltou o danado e ele começou a ganhar velocidade e aquela zoada da hélice no pé do ouvido, a incomodar.

Veloz, o avião desgarrou do chão e foi ganhando altura, não muito, uns vinte metros, nessa hora veio um vento lateral, deu um tapa de mão aberta na cauda do avião, ele se entortou todo e penando foi ganhando altura, o motor agora piava alto, em três minutos cruzamos o rio Acre e eu via o chão bem, bem ali, a um beiço de distância, então comecei a mover os lábios.

Não sei quanto o avião subiu, 50 metros, 100 metros e parou por aí, mas já dentro das nuvens. Estava muito nublado, a chuva ainda estava forte. A visibilidade não era das melhores e nisso o piloto começou a falar pelo rádio. Do pouco que eu entendi, sem uma visibilidade adequada, ele recebeu a sugestão de outro piloto para descer o avião e voar rente ao teto das nuvens, com um teto baixo, mas com a visibilidade bem melhor, dava para ver os rios, o gado, os vaqueiros,  as árvores. Algumas Castanheiras-do-Pará pareciam tão perto do avião que dava medo. 

Olhando para o piloto a todo instante, notei que ele havia começado a suar, corria um suor pela fronte dele e nisso, freneticamente movia, mexia um bocado, um dos botões do painel, era um tal de aperta, de desaperta e o suor não parava, foi quando eu comecei a declamar em silêncio: "Pai nosso que está no céu; Pai nosso que estás no céu", e enquanto o pai nosso não saia disso, a boca foi secando.

Com a boca seca, eu só olhava para frente e de repente vejo, do lado esquerdo um rio, já mais largo. Embora no contexto dos grandes rios da Amazônia, ele parecia um riacho encorpado.

Voltei a olhar o piloto, ele agora parecia mais tranquilo e aí voltou a conversar comigo, explicando que um avião tem circuitos elétricos independentes, que mesmo, no caso daquele monomotor, se ocorresse uma pane elétrica, o motor continuaria a funcionar.

Já mais confiante, deu uma guinada para a esquerda e aí surgiu uma pista de pouso, não vi nenhuma pessoa por perto, estranhamento total e a pista me pareceu enorme para o tamanho daquele avião. O piloto aterrissou e com cem metros ele voltou e foi para a estação de passageiro abandonada, descemos, tiramos as malas e uma Kombi se aproximou.

Ainda na pista do aeroporto de Boca do Acre, olhei para trás e vi o piloto tentando colocar o avião para ligar o motor, era um tal de aí, aí, o motor estalava e não pegava, fumaçava e teimava em ficar sem funcionar. Parecia meu velho Fusca quando teimava em não pegar.

Saímos do aeroporto e pegamos a pista para o bairro Platô do Piquiá, onde moraríamos. Cinco minutos depois, o piloto deu um sobrevoo rasante, nos avisando que ele voltaria para Rio Branco. Olhei para frente,  aliviado por estar em terra, respirando a fumaça da Kombi, que queimava mais óleo que gasolina e sinceramente, sinceramente, ainda hoje, quando lembro disso, engulo em seco, imaginando aquele avião engasgando lá em cima.

Aí eu tentei me lembrar de uma frase daquele dia, sem êxito, então encontrei essa de Fernando Sabino: "Os homens se dividem em duas espécies: os que têm medo de viajar de avião e os que fingem que não têm"; eu me incluo na espécie que reza quase o tempo todo.

Abração, Semana Iluminada.
Marconi Urquiza

O poder revela ou transforma uma pessoa?

  imagem: Orlando/UOL.            Um papo na última segunda-feira entre aposentados do Banco do Brasil que tiveram poder concedido pela empr...