sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Com 93 anos ainda jogava bola.

           Sou velho de mais para censurar, mas suficientemente jovem para agir.... Frase de Johann Goethe.

Por Marconi Urquiza.  7 minutos de leitura.

Fiquei pensando no que escrever para semana, até que achei o tema, mas não achei o tom.

     Mas não é que um evento aqui em Recife me salvou. JINFAABB, naturalmente esta palavra é um sigla: Jornada de Integração dos Aposentados do Banco do Brasil. 

     Com um número tão grande de aposentados, para tão pouca gente participando, só que, a participação dos que comparecem é intensa e foi esta intensidade que me fez compartilhar uma surpreendente crônica de Antonio Maria, Antonio Maria de Albuquerque Moraes, escrita em 23/1/1955.
   
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  Que Deus o tenha ...(*)

     Morreu, há dias, com 93 anos, o meu velho Camilo, sem que eu estivesse perto para sorrir-lhe, com carinho, na hora da tão protelada  partida.  Depois dos oitenta anos, virou menino e deu para fazer as coisas mais infantis deste mundo. Como uma criança, passou a ser criado por duas sobrinhas, Ana Cândida e Rosemira, ambas solteiras e possivelmente virgens. Bisbilhoteiro e indiscreto, deu para ouvir conversas e repeti-las, exatamente no momento em não devia. Uma vez, por exemplo, quando a senhora Tomás  Caldas, em visita, contava histórias e dava risadas, Camilo interrompeu para perguntar "se  aquela era a tal moça que passava o marido pra trás, com um goal-keeper". Como, por coincidência, era, as coisas ficaram malparadíssimas e o velho, os noventa anos, ficou três dias sem direito a outra coisa que não fosse o quarto, onde lhe traziam comida e água gelada. Embora pareça incrível, aos sessenta apaixonou-se pelo futebol e, não satisfeito em assistir a algumas partidas do Botafogo, deu, também, para bater uma bolinha no quintal, com dois sobrinhos afins, alguns  meninos da vizinhança e o empregado da casa. Para a idade e com relação à  tardia iniciação pebolística, jogava até direitinho. De calção, camisa, chuteira de  basquete e boina, era o que se podia desejar - como atleta - de superior em ordinário.
     Grande conversador, contador de casos incríveis, principalmente das aventuras do seu tempo de moço, qualquer conversa sempre tinha uma  mulher no meio. Contando, por exemplo, como foi a noite da passagem do século, arrematava assim:  "Nessa  noite, morto de bêbado, dormi com Margarida". Gostava de mim - dizia na frente da gente - por causa de minha burrice e da minha feiúra. Tinha pena de eu ser feliz tão feio e tão burro, com um salario só.
    Em novembro do ano passado fui levar-lhe um canário de presente e, no portão, senti o sobressalto da casa, Ana Cândida e Rosemira, aflitíssimas, andavam de um lado para o outro, telefonavam, chamavam parentes e rezavam em voz alta. Calculem que Camilo, completamente proibido de tocar em feijão, comprou uma feijoada de lata, esquentou em banho-maria e comeu com farinha. Para rebater, bebeu uma cerveja gelada e ficou jiboiandoEsteve dois dias entre a vida e a morte e, no terceiro dia, disse um palavrão a meu  respeito e levantou, que nem parecia. As sobrinhas, coitadas, cansadas de tantas  vigílias, contrataram duas enfermeiras e foram passar aquele fim de semana espichadas nas camas da Pensão Pinheiro, em Teresópolis.
    Quando voltaram, redobraram as proibições e os zelos em relação a Camilo. Com 93 anos não era possível deixá-lo tão solto. A recomendação que levava maior empenho era aquela: "evitar o quintal para não levar chuva". Pois bem, há uns dois meses, Rosemira me contou: "Estava chovendo e nós procuramos o tio Camilo pela casa inteirinha. Até embaixo das camas nós espiamos. Fomos procurar no quintal. Mal chegamos, ele vinha correndo e gritando para empregado: "Passa aqui, passa aqui...".
     - Mas jogando futebol? - perguntei quase abismado.
     - Na chuva e sem boina - completou Ana Cândida.
    A morte de Camilo andou arrancando umas lágrimas destes meus olhos secos. Era ainda uma pessoa em quem se podia descarregar certas amarguras. Ouvia o que se lhe contassem, as coisas mais escandalosas, e dizia sempre: "És fabuloso, és fabuloso". Se, diante de um caso complicado, lhe perguntasse o que fazer, respondia, invariavelmente: "Nada. Deixa o tempo cuidar disso". Muitas vezes fui à casa com o coração na tipóia e voltei mais menino e menos responsável do que ele próprio. Falando de si mesmo, dizia coisas dignas de aspas. "Não sou nada mais que uma saudade do meu filho natural, que é tuberculoso em Davos, na Suiça".
    Anteontem, fui conversar com Ana Cândida e Rosemira, para saber como iam as coitadas. Estavam num estado de fazer pena. Nos recantos da casa, nos móveis e utensílios, realizavam a impossível presença de Camilo. "Aquela cadeira era dele. Era ali que ele implicava com o cachorro." Depois, de lenço na mão, a voz cortada de soluços, Ana Cândida contou como foi a morte. Começou assim e só pôde dizer isto: "A perna quebrou-se em três  lugares". Soluçou. "Eles dizem que não. Mas, para mim, entraram em Camilo sem bola".
     Ao choque daquela surpresa, prendi tanto a vontade de rir, que comecei a chorar. 


(*) Crônica do livro Com Vocês, Antonio Maria. Editora Paz e Terra, 1994, p. 131.
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