sexta-feira, 8 de maio de 2020

Avô danadinho, avó valente como ninguém.

Mas o que quer dizer este poema? - perguntou-me alarmada a boa senhora. E o que quer dizer uma nuvem? - respondi triunfante. Uma nuvem - disse ela - umas vezes ... Frase de Mario Quintana.

Essa história chegou aos pedaços, um dia soube algo, muitos anos depois, mais um pouco e bem mais recente é que ela se formou.

A primeira parte eu ouvi de um familiar que minha avó havia quebrado todos os móveis do quarto ao flagrar meu avô com uma amante. Que ela era durona eu já intuía, pois em criança frequentei muito a casa dela para tomar café de manhã ou tomar uma sopinha gostosa com direito a passar pão francês sobre o prato para não deixar nenhum tracinho da sopa.

nesse dia a conversar correu, é claro que me admirei, até que ouvi: "Mas não foi só isso, ela quebrou tudo e levou para o quintal e fez uma fogueira. - Uma fogueira? - Uma fogueira." Me calei, mas ficou em minha mente uma certa admiração. Isto era nos anos 1930, logo no começo do casamento.

Toca a vida. Ela já era uma senhora com mais de 80 anos. Nesta época nós morávamos em Palmeirina, PE, 1994, imagino. Combinei com ela que a levaria para Recife, então na véspera da viagem eu fui pegar ela em Bom Conselho, pernoitou lá em casa e eu curioso comecei a conversar com ela. Curioso como sempre fui, fiquei rodeando, puxando conversa, puxando conversa, lembrei e voltei a agradecer pelo dinheiro que fui pedir emprestado para comprar um anel de compromisso para Cida e na verdade, me deu o que faltava. 

Sabe, naquele dia, ela disse: "Traga ela para eu conhecer." Agoniado, querendo ir para casa tomar banho e ir namorar eu disse: "Mangina já vou.  - Fique aí, o cuscuz já vai sair." Eu esperei e pensei que ela também jantaria, mas não, aquele cuscuz foi feito exclusivamente para mim. Foi estranho. 

Bem, voltando para o papo com Mangina em Palmeirina. A conversa andou e finalmente o meu avô entrou no papo. Ele já havia falecido há quase vinte anos. Eu falando da minha admiração por ele, acho que falei do temperamento que eu via na farmácia de papai. Ela ouvia, quando parei, Mangina disse: "Mas ele não era tão bonzinho assim", foi quanto perguntei pelo episódio dos móveis e ela confirmou. A conversa tomou outro rumo. Fomos dormir. 

Não sei se naquele dia, ou antes, ou depois, Cida chegou dizendo que estava Hiper Carrefour aqui em Recife e ela foi chamada, incluindo o sobrenome Urquiza. Meu avô era Valdemar Urquiza Cavalcanti. Aí uma senhora perguntou o que Cida era dele, "sou casada com o seu neto". O papo caminhou e aquela senhora disse, estou interpretando pelo sorriso mostrado por Cida, que ela gostou do flerte dele, pois disse: "Ele gostava muito de pular a cerca, era muito danadinho". A coisa foi se misturando. Menino não sabia dessas histórias e dos conflitos que causaram. Adulto, já com 35 anos, elas estavam se juntando.

Ele tinha sido um homem bonito. Na juventude, boxeador. Ainda mantinha um corpo esguio. Isto por volta de 1976, meu pai nessa época já era obeso.

Vou dar um salto para trás.

Aprendi a dirigir carros aos quinze anos. Depois de estar pronto para dirigir, meu pai me encarregou de levar duas vezes por semana ração para a sua fazenda, o Poço do Cosme. Na segunda levava ração e vovô, na sexta eu ia pegar vovô e levava mais ração. Ele ficava a semana toda tomando conta de lá.

Vovô era engraçado,  se eu corria muito, ele reclamava,  se dirigia devagar, ele perguntava se a roda era quadrada; ainda assim eu me divertia colocando 80 km/h em um trecho de reta, naquela estrada de terra cheia de costelas de Adão, alguns quilômetros depois da Serra de São Pedro,  na direção de Logradouro dos Leões, distrito de Bom Conselho, PE.

Mas em uma dessas sextas-feiras eu fui buscar vovô pela manhã.  Cheguei, deixei ele na sua casa e fui para a farmácia.  Aí, de repente, fora do script, meu pai me chamou ...


*

Este episódio ficou adormecido, nunca liguei aquela estranheza a nada mais que uma mudança súbita de humor. Fui, deixei ele na sede da fazenda. Nem desci, arrastei o carro arretado, levantando poeira com um marcha primeira forçada e vim embora.

Aí, alguns anos atrás, ocorreu um encontro de parte de nossa família em Maceió. Se não foi nessa ocasião, peço perdão. 

Chegamos na casa do meu xará, esposo da prima Milena Urquiza Ribeiro, filha da tia Marluze. A nossa prima, Maria Tereza, que mora nos Estados Unidos, queria comemorar o reencontro familiar com quem podia estar presente.

Em certo momento, o clube do bolinha se formou e por sermos todos de Bom Conselho as reminiscências foram sendo trazidas. Com Jeovane, por exemplo, não conversávamos há uns trinta anos. 

Quanto o papo rolava solto, chegou Rosa, esposa de Jeovane e  que morou com meus avós desta a infância até casar, eu acho. Aí ela olhou para mim e perguntou:
- Marconi, você se lembra quando teve que levar seu Valdemar de volta para a fazenda?
- Lembro.

 *

Vou contar a minha parte na história. Era uns nove horas quando fui pegar vovô na fazenda, naquela sexta-feira. Cheguei lá, esperei uns quinze minutos. Ele trouxe a sua bolsa, vi quando a empregada da casa fechou as portas, trouxe as suas coisas e entrou no carro. Nada a estranhar, pois era costume papai dar carona aos seus empregados e vizinhos para irem a Bom Conselho.

A viagem foi tranquila. Vovô calado, eu não corri demais e nem de menos. Tudo normal,  tudo circunspecto, tudo tranquilo durante a viagem. Quando eu deixei vovô na sua casa junto com   aquela senhora da corona, empregada que cuidava da casa e cozinhava para ele na fazenda, eu fui para a farmácia esperar a hora do almoço.


*

- Você  lembra? - Repetiu a pergunta Rosa.
- Lembro sim!
- Sabe o que ocorreu?
- Não. - Aí a minha curiosidade se acendeu.

Rosa começou, com aquela riqueza de detalhes que marcam a memória de uma pessoa.

- Seu Valdemar não viu quem havia entrado no banheiro e ao ouvir o som do chuveiro ligado ele foi para porta e ficou chamando bem baixinho: "Fulaninha, oh fulaninha, fulaninha, oh fulaninha". Quando eu vi ele ali, cheguei perto e disse: "Seu Valdemar, quem está aí é dona Georgina." 
- Disse Rosa que a reação imediata dele foi algo assim: "Ui, ui, ui, ui".

Imagine a cara de vovô,  apavorado.

Eu estava lá Farmácia Confiança, sossegado, acalentando a hora do almoço e companhia do meu pai para irmos a nossa casa, então ouvi:
- Marconi, venha cá. - Eu fui até onde ele estava e ouvi: - Vá pegar o seu avô e leve ele no Poço do Cosme.
- Mas pai! Eu trouxe ele, não faz nem duas horas.
Papai me olhou severo e disse mais ou menos assim:
- Vá levar o seu avô! Não é da sua conta!

Era um segredo de pai e filho, quem imaginaria meu avô com uns 72 anos está com uma namorada, beirando os 50 anos.


*

Mais de vinte anos depois daquela viagem silenciosa com vovô, estou com Mangina sentada na varanda da nossa casa em Palmeirina, calado, juntando todos os pedaços daquela minúscula parte da nossa história.

Não sei porque eu voltei a perguntar sobre o episódio da fogueira com os móveis, ela voltou a confirmar e ao ver a minha expressão, disse assim:
- Você pensa ele era bonzinho? Só tinha a cara.

Em um linguajar mais coloquial, só faltou ela dizer que ele era bem traquino.

Bem, faz um tempão que eles se foram.  Outro dia eu escreverei sobre o cuscuz especial que Mangina fazia. 


Abração, venturosa semana.
Marconi Urquiza

4 comentários:

  1. Relato que cabe em muitas famílias do Nordeste, todos não eram "muitos santinhos". Parabéns.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado Ademar. Havia tantas manteúdas, quanto a grana e o apetite sexual dos "santinhos."

      Excluir
  2. Excelente história e diga-se de passagem, muito comum, em muitas famílias. Principalmente, naquela época.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado. É verdade, parecia um padrão social. Os homens, sem muitas puladas de cerca, parecia não considerado por seus amigos.

      Excluir

Deixe seu comentário.

O poder revela ou transforma uma pessoa?

  imagem: Orlando/UOL.            Um papo na última segunda-feira entre aposentados do Banco do Brasil que tiveram poder concedido pela empr...