sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Você se lembra?

 



O expediente se encaminhava para terminar quando Marco Antônio viu se aproximar da sua mesa Genilton, que sentou e puxou conversa. Como faltavam cinco minutos para Marco Antônio dar saída no ponto e ele ficou ouvindo o seu colega falar.

Às vezes gostava de conversar com Genilton, mas quando o assunto era sobre política ou futebol, evitava. Tempos atrás, ao fazer um comentário de uma notícia na internet sobre um político famoso, se surpreendeu com a agressividade do colega, desde então apenas ouvia, quando dava, mudava de assunto. 

Foi o que ocorreu naquela tarde, com o papo sendo chato, sem querer opinar e nem expulsar o seu colega da sua mesa, Marco Antônio estava para fazer cara de paisagem quando sentiu que Genilton havia esgotado os assuntos do momento. Achando que a sua história caberia na conversa de ambos, ele começou:
- Sabe, na semana passada eu recebi aqui no trabalho um xará, Antônio, só Antônio. Ele sentou aí onde você está, se apresentou, melhor, disse que era amigo do chefe. Mostrou o seu álbum de fotografias do seu trabalho. Rapaz, eu estranhei as roupas coloridas.
- De palhaço?, - perguntou Genilton.
- Não. Poderia ser ... – e Marco Antônio parou de falar, pensava.
- De palhaço Marco? Só pode ser.
- Não, de Drag Queen.
- Drag Queen!!, - Genilton falou tão devagar, o estranhamento do exotismo da profissão de Antônio só não foi maior, por que ele via vez por outra um na tevê.
- Pois é. Nem deu tempo de pensar em algo, ela já foi contando o seu problema ...
- Qual problema esse bicha tem? Não é para ter nenhum.
- Mas tem ...
- Ignora, irmão. Ignora.
- Não consegui ...
- Você tem o coração mole. Mole demais.

Marco Antônio olhou para Genilton já arrependido de ter falado, mesmo assim sustentou o olhar de condenação do seu colega de trabalho. Cuidadoso, escolhendo as palavras, falando com um tom de voz ameno, disse:
- Genilton, eu tinha que ouvir. Olha, no estado dele, dez reais para mim não custa nada. Nada. Nada ...
- É que você é rico, mas também é muito besta!

Marco Antônio já tinha resolvido parar aquela conversa com Genilton. Estava procurando a palavra mais educada para interromper o papo, que havia se tornado desagradável, mas de repente Genilton mudou de tom, já crítico, rosnou:
- Você gosta é de bicha! Não é?

Marco Antônio ia levantando, foi quando se lembrou que estava na sua própria mesa. Por muito pouco não disse: “Meu velho, levanta daí que você não é bem-vindo!”

A expressão de Genilton era agressiva, até arrogante. Marco Antônio viu, mas fixou o pensamento em uma conversa diferente daquela.

Esperando uma resposta ríspida, que não veio, Genilton, ao não ver alimentada a sua vontade de brigar, relaxou, nisso Marco Antônio voltou a falar:
- Genilton, dia desses um cliente sentou na minha frente e começou a conversar.
- Eu sei, você tem paciência.
- Aí esse cliente me pediu socorro. Não tinha forças para subir essa escada.
- Lá vem você com seu coração bondoso, - disse Genilton, irônico.
- Eu chamei Zezé e ele desenrolou, - desta vez não houve réplica. 
Marco Antônio continuou:
- Sabe, um mês depois ele voltou, mas dessa vez não pediu ajuda.
- É capaz de ser o tal de Drag Queen.
- E ele contou uma história linda. Disse que um dia estava na aula quando uma colega chamou parte da turma para rezarem juntos.
- Agora vem você com religião.
- Pois bem, ele disse que durante mais de mês ele rezaram no intervalo do recreio a favor de um colega, que ele não tinham tanta intimidade.
 
Nesse momento, Genilton tinha parado de se mostrar irritado e prestava atenção.
 
- Sabe, Genilton, eu fui ficando acanhado com a fé dele. Teve uma hora que eu disse que não era de rezar e ele disse, sorrindo: “Olhe, não se preocupe, eu rezo por você e por mim”. Sabe, eu dei um sorriso chocho. Chocho demais. Nisso ele já tinha se levantado e foi no cafezinho, quando voltou veio trazendo um para ele e outro para mim. Tomamos, então perguntou: Onde eu estava?
- Falando da oração para o colega, - respondeu Genilton.
- É verdade. Foi quando ele disse que quase dois meses depois, aquele colega voltou curado e depois de uns quinze dias ele se aproximou do rapaz e disse a ele: “Nós rezamos toda noite quando você estava em doente.”

As rugas de contrariedade que existiam no rosto de Genilton foram suavizando, ficaram apenas as dos anos, então ele deu uma fungada e disse:
- Era para mim. Esse homem é o Drag Queen?
- É.
- Eu não agradeci. Onde ele está?
- Morreu ... estava bem doente. Pegue esse papel, ele deixou esse poema que um amigo havia feito naquele tempo.

Genilton pegou, desembrulhou o papel amarrotado como quem abre um pacote de pão e se pôs a ler:
Muitas vezes nos
damos por vencidos
ao ouvirmos
de alguém um
diagnóstico.
Porém Deus nos
prepara o prognóstico
Atendendo com amor
nossos pedidos.
Os problemas são
todos removidos (no áudio errei e gravei resolvidos)
quando a fé se torna
cristalina.
E a resposta que
vem da mão divina
nos devolve por inteiro
as emoções.
Ao notarmos que
nossas orações
Alteram as razões da
medicina.
Genilton baixou o olhou e viu: 
Ass. Ademar Rafael Ferreira
 
Então Genilton olhou para Marco Antônio e apenas disse:
- Não sei o que dizer.
- Depois que ele saiu de vez da vida, eu só penso nele assim: Meu amigo, um certo Antônio, - falou Marco Antônio.
- É, - disse Genilton, e o silêncio se fez ouvir.


Grande abraço, Semana Iluminada
Marconi Urquiza

8 comentários:

  1. Marconi, parabéns por mais esta crônica. É muito bom começar o dia com uma boa reflexão.

    ResponderExcluir
  2. A inesgotável capacidade de criação que tem o bom cronista nos transporta para o mundo por ele idealizado. Parabéns.
    Ademar Rafael Ferreira

    ResponderExcluir
  3. Obrigado Ademar. Sem os seus poemas o texto seria pobre.

    ResponderExcluir
  4. Prezado Marconi,

    Crônica original. Despertou a curiosidade sobre esse que parece “gente boa”. Esse Marco Antônio deve bater papo com as pessoas, dar bom dia pros vizinhos, ser fiel e frequentar a missa dos domingos - ou um culto espírita.

    Talvez, até empreste os livros dele aos amigos e tome uma gelada, de vez em quando. O problema dele é que ele nunca chutou o pau da barraca, nem dançou Xangô (provavelmente). Se tiver filhos, eles, com certeza, mijam na cama.

    O bom escritor faz a gente imaginar o cenário não verbalizado. Em minha leitura, você fez. Continue. Essa jornada será rica e interessante. Um fraterno abraço.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Amigo, nem de longe eu havia pensado no perfil de Marco Antônio pelo ângulo que você abordou. Isto me leva a refletir em cuidar dos personagens para que não caiam no erro de apresentar um estereótipo.

      Quanto a construção do conto,
      Eu tinha o propósito de mostrar exemplos que considero bons. Também quis despontar dois pontos, reais. Antônio existiu, Ele era drag queen e era negro, e disse que faria orações para ele e para o interlocutor.

      O outro ponto que eu desejava trazer foi o da oração coletiva, também real, eu participei e foi dirigida para uma colega que teve câncer no seio. Se curou está viva desde 2001.Foi uma das experiências coletivas das mais interessantes que testemunhei.

      Obrigado, sai enriquecido ao poder um pequeno debate.

      Abração.

      Excluir
  5. Marconi,não se preocupe com estereótipos,nem com excesso de cuidados. O seu trabalho é promissor., em minha modesta avaliação.

    Um aspecto interessante para refletir, no entanto, é que a linguagem é polissêmica e os personagens ganham "vida prpria" - se tornand protagonistas do enredo e da imaginação dos leitores. Uma história escrita tem o poder de se antropomorfizar e se autonomizar. Continue. Você construirá outros textos tão polissêmicos e interessantes quanto este. Ou mais até.

    ResponderExcluir

Deixe seu comentário.

O poder revela ou transforma uma pessoa?

  imagem: Orlando/UOL.            Um papo na última segunda-feira entre aposentados do Banco do Brasil que tiveram poder concedido pela empr...