sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O menino invisível

 

     Se um menino traquina
     Aos pais ele não responde
     Se entoca num lugar
     Que só ele sabe onde.
     Numa rapidez incrível
     Se transforma em invisível
     No lugar onde se esconde.

                  Ademar Rafael Ferreira


Naquele dia, ao acordar, o menino da canela fina, magro e comprido para os seus nove anos ganhou a rua, mas parou na calçada da sua casa. Achou tudo diferente. Muita gente parada perto da igreja, na rua, no calçamento, onde à noite ele e os amigos faziam de campo de futebol.

Preocupado, andou até a casa do seu avô, entrou e ficou conversando com a sua avó. Não lembra ter visto o vovô, que naqueles tempos andava trabalhando como fiscal temporário do agronegócio do Banco do Brasil.

No meio daquela conversa,  a sua avó serviu o cuscuz, feito de milho com uma pitada de goma de mandioca. Cuscuz ligadinho. Colocou um pouco de leite e ensopou com o molho do bife de caçarola. Comeu com gosto e beliscou a xícara de café. Achou forte e mesmo atolando o açúcar, o menino não bebeu. Se levantou quando a empregada recolheu o prato e em seguida ouviu:

- Venha meio-dia, que o seu avô vai trazer aquele doce de leite que você gosta.

- Posso almoçar aqui?

- Pode, avise a seu pai.

- Tá certo, vovó.

- Vou em casa pegar as minhas coisas para ir a aula de dona Maria do Carmo.

- Acho que hoje não vai ter aula.

O menino não entendeu esta última frase, deu a benção à avó e saiu correndo pela casa até a calçada, nela parou de novo. A multidão tinha crescido. As escadarias da igreja matriz estavam lotadas. Muita gente sentada à sombra.

O menino andou mais um pouco. Viu que a praça também estava repleta de adultos. Caminhando lento, ele foi ficando invisível diante daquelas pessoas. Com cuidado, de menino que andava sobre muros, ele caminhou. Cinco passos, uma parada. Avaliava o terreno e voltava a andar. Foi assim que chegou na frente do bangalô branco, alpendrado do lado direito, com frisos dourado correndo toda a casa.

Na calçada olhou para cima, para o alpendre e viu os adultos, muitos da idade do seu pai ou do seu avô, sentados na varanda. Não conversavam. Estranhou,  ele costumava ver esses homens falando livremente. 

Tudo ao redor era silêncio. Ele não lembrava direito, mas olhou para a parte de baixo da praça e viu as portas dos comércios arriadas até a metade. Captou a anomalia, mas não soube interpretar.

Ele sentia que alguma coisa estava ocorrendo. Aproveitando que estava invisível para a multidão, o menino de canelas magras esticou os braços e pegou no parapeito do janelão, puxou o corpo e pisou na beirada pequena que tinha na metade da parede. Apoiado precariamente, olhou para dentro do quarto e ficou vendo o que se passava.

Viu um homem deitado de pijama, uma mulher vestida de preto sentada ao lado dele. O homem respirava com dificuldade, puxava muito ar. O menino via e não compreendia. Quando o homem deu a última suspirada e se aquietou, a mulher se levantou, cruzou as mãos dele e saiu do quarto.

Ainda pendurado sobre o parapeito da janela, o menino ouviu um grito e da escada desceu um homem correndo, muito emocionado.

Ainda invisível, o menino desceu da janela e foi procurar uma sombra. Lá ficou observando todo o movimento. Vários minutos depois, o homem que havia saído muito emocionado voltou, ainda muito nervoso e em seguida entraram outros homens com um ataúde.

Depois de um tempo, sentado entre os adultos, ele viu o avô chegar na calçada do bangalô. Ele atravessou a rua e encostou nele, recebeu um afago e ouviu:

- Vá para casa, aqui vai encher de gente, - o menino ainda olhou ao redor na busca de um amigo para brincar e recebeu um tapinha leve, lhe chamando a atenção e em seguida o avô falou de novo: - Vá, o coronel morreu.


Semana Iluminada

Marconi Urquiza

10 comentários:

  1. Texto dá vida aos comportamentos de um menino que gosta da rua, ali ninguém nota sua presença e ele poder agir, curiar e traquina.

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    1. É verdade. A rua vira um sumidouro e um manancial enorme de criatividade e brincadeiras.

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  2. THELMA (VIA WHATSAPP GRUPO JOVENS APOSENTADOS)
    Realmente somos um grupo muito especial!
    Tão cedo e já fomos presenteados por uma música e um conto que nos levam a cultivar na alma bons sentimentos.
    Obrigada @Oceano II e @Marconi Urquiza

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  3. DJALMA XAVIER (VIA WHATSAPP GRUPO JOVENS APOSENTADOS)
    De onde você tira essas coisas que emocionam a gente, toda sexta? Onde você busca as as idéias e as palavras, na ordem certa pra atingir o coração da gente? Quem é esse escritor, antes bancário, que trocou números e metas, por palavras e livros? Não sei as respostas, só sei que saímos ganhando����������������

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    Respostas
    1. Amigo Djalma,.

      Seu elogio me deixou fofo.

      Muito obrigado.

      Qualquer dias desses, quando eu achar as respostas para as suas perguntas, eu falo.

      Abração

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  4. OCEANO SALVADOR (VIA WHATSAPP GRUPO JOVENS APOSENTADOS)
    E chega as belas crônicas do amigo Marconi. Parabéns amigo, vamos que vamos relembrando as traquinagens da infância. Aproveito para deixar esta contribuição de Paula Monteiro: "A felicidade é um menino
    traquino jogando bola .

    Florindo nos olhos
    a eternidade do seu instante
    sem pressa
    sem preocupação
    sem julgamento
    sem querer saber se existe mesmo destino."

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  5. LUCIA RIEIRO BB (VIA WHATSAPP GRUPO JOVENS APOSENTADOS)
    trouxe lembranças da minha infância .Era assim mesmo.

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