sexta-feira, 12 de março de 2021

"PARECE QUE FALTA UM PEDAÇO DE MIM"

Marne Urquiza

    
Em um ano tão difícil quanto o atual, alguém enfrentou a sua luta.
    Como fugitivo, o rapaz magro, meio cabeludo, de barba por fazer, com um filho a caminho andava nervoso. Tão prudente, tão comedido, chegou em casa e disse:

    − Hoje eu vou, hoje eu vou...
    − Para onde? 
− A esposa olhou para ele sem entender aquela agonia.
    − Eu vou... − era tudo que ele conseguia dizer.

    Saiu dali e se sentou na frente da casa. O seu rosto estava lívido, na noite anterior havia escutado uma canção na novela Roque Santeiro. Na sua mente ela tocava sem parar, em repetição sem trégua a música recomeçava na primeira estrofe, mas ele às vezes balbuciava outra:

    É duro ficar sem você
    Vez em quando
    Parece que falta um pedaço de mim
    Me alegro na hora de regressar
    Parece que vou mergulhar
    Na felicidade sem fim

    Naquele dia não viajou e o rapaz foi ficando. Ficou. 

    Um dia de agosto ele fez as contas, três anos, três anos e oito meses sem ir na sua terra. Desde 15 de novembro de 1982 não passava nem perto. Na mesma semana ele disse a esposa:

    − Sexta nós vamos a Bom Conselho.
    − E aquele povo por lá?
      − Nós chegamos sexta-feira de noite e saímos no domingo de madrugada.

    Assim ocorreu, chegou cedo em Garanhuns e esperou que a noite crescesse, lá pelas nove horas da noite entrou no carro e foi conduzindo devagar. 60 km/h. Quase uma hora de viagem. Já perto da fazenda de Catarina, as luzes da igrejinha apareceram, as da encosta da Serra de Santa Terezinha também. Centenas de casas humildades subindo a ladeira.
    Uns dez minutos depois passou pelo posto de Bernardo, na praça Frei Caetano a imponente igreja matriz surgiu no horizonte.
    "Cheguei", chegou, seu coração saltitava. A estrofe da música não era ouvida, mas muito sentida. "É duro ficar sem você", a frase chicoteava seu coração, que para não chorar preferiu se manter calado. Naquele início de noite se lembrou da madrugada de mais de três anos antes, quando entrou dirigindo um carro cheio de policiais mortos de cansados e ele encharcado de adrenalina se mantinha acesso. Recordou ter passado o dia acordado, de que deitou-se no início da madrugada e teve a sua noite mais longa na vida. 36 horas sem dormir.
    A viagem prosseguiu, passou pela ponte do colégio, subiu pela rua Sete de Setembro, quando viu a Praça Pedro II, olhou para o imenso espaço, quase sem ninguém, naquela noite fria de agosto. Virou na esquina, para a esquerda e deixou o carro descer a ladeira. Cinco minutos depois entrou na casa do sogro, de onde só saiu no domingo às cinco horas da manhã. Passou pela frente do cemitério, sem disposição de ir olhar o túmulo do pai.

    Na manhã do sábado não saiu do quarto, não era para ninguém vê-lo. A casa era muito movimentada nesse dia. Ele não cabia dentro da saudade. Não cabia dentro do seu silêncio. O tempo passou, muitas outras vezes voltou ali, centenas. A cada ida o tempo ia esgaçando a sua saudade e os seus sentimentos não eram mais de dor, apenas a alegria de rever pessoas queridas.

    Mas trinta anos depois, estava em um bar jogando conversa fora e tomando umas cervejas. O magro, que já era obeso, ouviu a música inteira sem o bloqueio da saudade e das lembranças dolorosas. Apenas ouviu, depois se voltou para um amigo e disse:

    − Eu pensei que essa música dissesse outra coisa, passei tantos anos a interpretando de outra forma.
    − Como, não entendi?
    − Você ouviu a música?
    − A de Elba?
    − É.
    − O que tem ela?
    − É que ela faz eu lembrar de papai. Pois quando eu ouvi pela primeira vez fiquei com a impressão de que ele falava da saudade de quem morreu...
    − É. Só entendi da saudade do seu pai.

    Então o ex-magro balbuciou:

    É duro ficar sem você
    Vez em quando
    Parece que falta um pedaço de mim
    Me alegro na hora de regressar
    Parece que vou mergulhar
    Na felicidade sem fim.


    Foi cantando e sentido a voz engasgar. O amigo colocou a mão sobre o seu braço  e disse:
    
− Agora eu entendi.


    Bem, essa é uma parte da minha própria história.

    Semana Iluminada.
    Marconi Urquiza

O LINK da canção:

De volta para o aconchego (Dominguinhos e Nando Cordel)

         Para melhor compreensão da narrativa








16 comentários:

  1. VIA WHATSAPP (GRUPO CINFAABB CAMBURIÚ): É isso aí Marconi, todos nós temos um pedacinho faltante. A sorte é que esse pedacinho nos traz ótimas recordações.

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  2. ZÉ NETO - VIA WHATSAPP (GRUPO CINFAABB CAMBURIÚ): Esta música marcou época de muita gente. No meu caso, foi uma namorada na juventude. A vida segue, cada um com sua história. Parabéns Marconi, vc como sempre, traz belas reflexões, e neste caso, foi uma boa lembrança

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  3. Obrigado Zé Neto. Música é sempre um marco na vida da gente.

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  4. GERMANO (VIA WHATSAPP - GRUPO JOVENS APOSENTADOS): Bela Crônica. Nos faz relembrar o passado.

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  5. WALMIR MAMEDE (VIA WHATSAPP - GRUPO JOVENS APOSENTADOS):
    Bela crônica Marconi.
    O retorno a esses lugares, são o aconchego que precisamos de vez em quando.

    Abraços

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  6. Paulo Profeta (VIA WHATSAPP - GRUPO JOVENS APOSENTADOS):
    Emocionante. Parabéns.

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  7. Caro amigo sei do seu sofrimento com essa tragédia. Siga em frente, o mundo precisa dos seus textos para ser mais humano.

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  8. Muito saudosa sua crônica Marne é um marco na história de Bom Conselho por isso Inesquecível Descanse em paz Marne sou sua primA não esqueço sempre estamos lembrando de você abraços Marcone a saudade é enquanto vida tivermos

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  9. Parabéns primo ! Muito bacana esse resgate das lembranças e a sua poesia dando voZ a tudo !
    Abração 😚

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