sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Era hora de me despedir ... de Afogados da Ingazeira


Havia chegado a hora de despedir dos colegas da agência do Banco do Brasil de Afogados da Ingazeira  e ganhar a estrada.  Dias depois teria que pegar um avião para Tabatinga,  AM.

Voaria pela primeira vez e acharia, lá do alto, que o barrento rio Solimões era um pouco mais largo que o rio Papacacinha em cheia, até vê-lo bem de perto, quando o Boeing 727 da Varig fez um sobrevoou pelo rio para aterrissar no aeroporto de Tabatinga.  Nessa hora ainda balbuciei, se cair vou morrer afogado. Não sabia e nem sei nadar até hoje. Mas me tranquilizei quando o piloto aterrissou como se estivesse passando a mão em um tecido de seda. Assim começava o segundo capítulo dessa aventura chamada de "vida de bancário."

Meses antes, a vontade manifesta e algum destaque no meu desempenho profissional me rendeu um convite de Inejaim para ser supervisor em Carnaíba.  Não seu certo.  Mas a gana e a ambição me movia. Após a frustração de não ter ido para Carnaíba, PE, eu fiquei naquela agonia, farnizim para os do agreste. Queria e não sabia como me encaminhar na carreira.  Aí, em uma das edições do BIP do DESED. BIP, Boletim Interno ao Pessoal, foi divulgada três vagas para supervisor em agências de difícil provimento.  Em resumo,  que ninguém queria ir.

Buriti, no Maranhão,  tinha outra Buriti em Minas e Tabatinga no Amazonas.

Dentro do que era disponível de informações eu me decidi por Tabatinga.  Ter exército na cidade era garantia que haveria alguma estrutura na cidade. 

Quando eu me decidi fui conversar com Dionísio.  O pedido tinha os seguintes campos: FUNCI/ASSUNTO/RAZÕES. Quando cheguei até ele, que era Gerente Adjunto, falei do que desejava, em poucos segundos começou a escrever seu parecer e sua indicação.  Me surpreendi pelas palavras elogiosas e pelo tamanho do texto. Bem maior que o meu. Fax pronto, transmissão feita, ansiedade agoniada por uns dois meses.

Creio que em abril de 1987 saiu a nomeação para Tabatinga. Começamos a nos preparar, aí a chegou a informação de que eu precisava fazer o curso de grafoscopia. Quando o material chegou eu estava de férias, uma semana de curso.  Victor,  bebê, já estava em Bom Conselho na casa dos avós.  

Então todo dia eu ia para agência fazer 5 horas de estudo.  Chegava por volta da 10 horas da manhã e sai, três,  três e meia. Na medida que aquela semana foi passando, meu coração cada vez mais ficava apertado.  Eu fazia uma força imensa para não me emocionar e ainda maior para não chorar.  Mas as lágrimas ficaram uma semana boiando nos meus olhos.

     Chegou o dia de fazer a prova.  Acho foi Daniel Evangelista que me entregou os envelopes com as provas teórica e prática e saiu. Foi cuidar dos seus afazeres.

Hoje,  a sensação é de que naquelas poucas horas eu me tornei invisível.  Eu já me encaminhava para concluir as provas. A pequena mudança residencial já tinha ganhado a estrada.  Eu havia combinado com Cida que ela viesse me pegar perto das três da tarde na frente da agência. 

Peguei as provas respondidas, a emoção fez meus gestos lentos, as coloquei dentro dos envelopes. Olhei ao redor.  Todo mundo estava concentrado.  Me levantei e fui saindo, desci a escada do primeiro andar e olhei para saguão do térreo,  me deu vontade de ir onde estavam os colegas para me despedir, mas senti que me derreteria em lágrimas. De fininho saí,  cheguei na frente da agência do Banco do Brasil e vi nosso carro, ao entrar não tive forças, o choro desceu com força.  Encerrava naquele instante cinco anos e quatro meses de um sentimento de que  vivíamos no meio de uma amorosa família. 

Abraço, 
Marconi Urquiza 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

CHEVETTE 78, eu em Afogados da Ingazeira

Resultado de imagem para chevette 78

Quando começou para valer a comunicação do I Encontro de Ex-funcionários do Banco do Brasil de Afogados da Ingazeira, no sertão do Pajeú em Pernambuco, eu fiquei recordando a minha ida para a cidade em janeiro de 1982. 

Lá cheguei em 09 de janeiro e já era noite, tomei posse na manhã de 11 de janeiro, já tendo como a primeira tarefa colocada pelo gerente adjunto Ronald Teixeira decorar a minha matrícula em cinco minutos e voltar até ele para declamar um dos meus números eternos (enquanto eu durar). Lá vai: 6804495X, "Repita rapaz"; 6804495X, ao ouvir pela segunda vez ele disse: "Decore, pois este número vai acompanhar você a vida toda." 

Pois bem, na chegada, no sábado, por volta das sete horas da noite eu tive que ir por um desvio até o centro de Afogados, pois a entrada principal estava interditada por causa do asfaltamento da rodovia. Após pegar o desvio, passei pela AABB e desci a ladeira, de repente eu parei o Chevette, branco, e olhei para a direita e vi uma luz enorme espelhada no "chão". 

Como já vinha desde que anoitecera achando que tinha um fantasma no carro, aquele "farol" me deu uma estranheza imensa. Passei um bom tempo tentando entender o que via, aos poucos eu fui acompanhando a réstia da luz, aquela calda grossa, tornando a luz bicuda de frente para trás, foi então que meus olhos brilharam, eu estava vendo um lindo luar espelhado nas águas da Barragem de Brotas.  Sim, eu vi um duplo e belo Luar do Sertão. Cabe poesia, mas eu vi literalmente e ela foi uma das melhores imagens que a minha memória guardou de todos os lugares em que passei na vida.

Bem, sapequei a primeira no Chevette e fui parar em um hotel perto dos Correios. Papai tinha me dado uma grana e eu havia também economizado uma parte da mesada que ele me dava, tinha um pouco de dinheiro. Havia completado 22 anos. Magro, cabelo grande, cheio de curiosidade e de medo. Seis anos atrás eu havia saído de casa para estudar e agora eu saia de vez do convívio da minha família.

E o Chevette?

Assim que saiu o resultado do concurso do Banco do Brasil, de 1981, eu não fui para Bom Conselho fazer a prova de datilografia. Péssimo datilógrafo eu demorei a fazer a prova. 

Quando estava definitivamente aprovado, com os primeiros papéis assinados com o Banco, meu pai me chamou de surpresa no meio da semana. Cheguei cedo e ao chegar em casa ele me disse: "Vá no Detran transferir o carro para você. Ele agora é seu." Fiz todo o trâmite e voltei para Recife no início da tarde. Pensava no presente, pensava como seria a minha vida dali para frente. Assim viajei 280 km.

Na época eu fazia Zootecnia na UFRPE e tinha dois colegas de São José do Egito, um rapaz e uma moça, irmãos. Não sei como, mas combinamos quando eu estivesse em Afogados iria visita-los em São José do Egito. Já naqueles primeiros dias em Afogados em travei uma boa amizade com Alcyr. Quando fui para visitar os colegas eu chamei ele. 

Logo na chegada em São José do Egito tomamos um susto imenso, fiz uma curva fechada que contornava o campo de aviação correndo um pouco mais que o limite e senti o carro levantar a roda do asfalto. Depois do perrengue, chegamos na casa dos colegas de Zootecnia. Bem, bebemos, bebemos, bebemos até quase acabar o sol.

Na volta, em um daqueles arroubos de bêbedo, com destemor (irresponsabilidade também) e com vontade experimentar que todo jovem tem, eu disse a Alcyr que queria ver até quanto o Chevette dava, pegamos uma ladeira em reta e eu empurrei o pé no acelerador. 155 km/h. Resumo: Chegamos inteiros em Afogados. Deus estendeu a mão sobre as nossas almas.

Quando chegou a Semana Santa eu convidei Alcyr para ir comigo visitar meus pais em Bom Conselho, distante uns 250 quilômetros. Desta vez a gente andou normal. Quando foi no final do domingo de páscoa a gente começou a viagem de volta, na altura de Arcoverde, talvez Cruzeiro do Nordeste Alcyr me pediu para dirigir o carro. Eu fiquei meio enciumado, mas terminei cedendo. Ele pegou o carro e tocou a viagem. Não sei direito que horas era aquela, dez da noite, onze horas, mas a temperatura já estava amena, fria para os padrões do sertão.

Seguimos na direção de Custódia, pois a estrada usual estava interrompida pelo asfaltamento da rodovia de Cruzeiro do Nordeste para Sertânia, tínhamos que pegar uma rodovia estadual que liga Custódia até Sertânia. Aquele trecho do sertão não tem montanhas, é uma estrada com elevações baixas, suaves, como são as curvas. Em certo momento, Alcyr, que vinha dirigindo devagar me perguntou: "O que é isso?" Eu olhei, os faróis de candeeiro do Chevette demoraram a iluminar aqueles vultos negros, mas a imagem se formou e creio ter tido: "Vacas". O tempo vai atrapalhar a minha memória, mas umas dez vacas grandes estavam deitados no asfalto. Na maior tranquilidade, nem se mexeram, contornamos elas e seguimos viagem. Creio que meia-noite a gente chegou em Afogados.

Tempos depois eu emprestei o carro e viajei para Recife. A capotada machucou bem o carro, o salário inicial no Banco do Brasil na época era pequeno. Dava com muito aperto para pagar a subsistência em Afogados e as minhas viagens para ver a namorada em Recife. Encostei o carro na Oficina do Magno e fiquei pagando a ele por mês. Cada mês eu dava uma grana e ele consertava uma parte. Lembro com clareza, que toda vez que eu saia do trabalho passava pela oficina e o via pelas grades, nem tinha coragem de me aproximar dele. Foram vários meses, até que a lataria ficou pronta. Ainda havia que fazer toda a tapeçaria. Que fiz muito tempo depois em Recife.

Bom, final de 1982 meu pai morreu. Em 1983, eu vinha da casa de Cida, hoje minha esposa, e parei o Chevette no Largo da Encruzilhada aqui em Recife. O sinal fechado, e eu planejando trocar de carro com a ajuda de papai, foi quando uma frase veio à minha mente: "Ele não está mais aqui." Adormeci a ideia e acordei para a realidade daquela circunstância.

Em meados de 1983 eu recebi a minha parte da herança dele, um pouco de dinheiro, uma parte de uma casa. Gastei mal, troquei o velho Chevette por um Passat usado. 

Muito meses depois eu me encontrei com o dono da loja onde havia trocado o Chevette pelo Passat e ele olhou para mim e quis confirmar apenas o que já sabia: "O teu carro foi deitado, não foi?" Dei um sorriso chocho e confirmei. Bem, foi a última vez que ouvi falar daquele Chevette 78. Um brinquedo de adulto que eu fazia questão de lavar e encerar semanalmente. 

Abraço e bom final de semana.

Marconi Urquiza





sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Culturas de uma América desconhecida

    

 Em maio do ano passado fiz uma visita ao Museu de Arte Pré-colombiana em Santiago, no Chile.

     A grosso modo, as minhas lembranças em relação a América do Sul estavam nos Incas, como se este grupo fosse organizado como um estado, fosse a única cultura da região andina.

      Outro grupo organizado como um estado e cultura própria que me veio rápido à minha mente foram os Astecas, no México. 

     Por causa dos filmes, lembro dos indígenas norte americanos: Siouxs, Apaches, Cherokees, entre outros, cheios de roupas estilosas.

     Volto para a América do Sul,  no Brasil com algum destaque está a cultura Marajoara, mas bem menor que as culturas que estiveram do lado do Oceano Pacífico na América do Sul.

     Mas uma terceira cultura,  imensa, até hoje misteriosa: são os Maias no América Central e do Norte,  no sul do México.

     Terminada esta pequena relação de culturas, veio o choque da minha ignorância enorme no tocante à quantidade de culturas que estiveram e estão no lado andino da América do Sul. Pelo menos trinta culturas estavam com as suas artes ancestrais representadas no museu.

     Artefatos de argila, de cobre,  de ouro,  de prata, de pedra,  de madeira, de pinturas, instrumentos musicais, roupas, muitos tecidos, peças cerimoniais e até múmias foram apresentadas, entre tantos itens que compõem o museu. 

      Tais culturas,  muitas desapareceram com a chegada dos espanhóis, outras foram assimiladas por outros povos, outros ainda estão por aí,  provavelmente uma minoria com a sua cultura ainda plena, como os Mapuches do Chile.

     Olhando com os olhos de agora, vejo que havia uma riqueza cultural imensa na linha que vai do sul do Chile, passando pela América Central até o México.

     É uma diversidade cultural que remete ao presente, onde muitos não aprenderam a considerar como é  importante haver culturas distintas da própria, realidade que enriquece  as nossas próprias vidas. 


Abraço e bom final de semana. 

Marconi Urquiza 

     

    

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Seu Aristóteles, os estalidos e o Corinthians

     Resultado de imagem para volante de loteria esportiva

    No tempo trazido por esta crônica, Seu Aristóteles já tinha mais de 60 anos. Ele se tornou assíduo ou eu comecei a vê-lo com frequência quase diária na farmácia de papai após a implantação da Loteria Esportiva. Cá dentro do meu coração, ainda guardo os volantes dos palpites para Copa do Mundo de 1970. 

    Após a criação da Loteria Esportiva passou a viver de recolher os palpites da cidade, os recolhia em Bom Conselho e levava para Garanhuns. Muitas vezes eu o vi bêbado na farmácia de papai. Se a memória não falha, eu não presenciei em nenhum momento meu pai enxota-lo de lá por causa da sua embriaguez. Meu pai tinha um enorme carinho por ele, acho que foi uma daquelas amizades que ia da mesa de jogo para a mesa de um bar, passando pela conversa sóbria no sofá da farmácia às cinco da tarde.

   Naquela época, lá em casa, a gente ouvia a Rádio Globo do Rio. Eu e meu irmão Marcello sabíamos de todos os resultados dos jogos da Loteria Esportiva. Muitas vezes dormíamos que com o rádio de pilhas gigante na cabeceira da cama para não perder nenhum jogo e nem o plantão esportivo. Mas rádio de São Paulo a gente não ouvia. 

     Certo dia, durante a semana, Seu Aristóteles chegou afobado para ouvir algo no rádio da farmácia de papai. Era um rádio elétrico, enorme, cheio de ondas (ondas curtas, ondas tropicais, etc) e dono de uma energia estática em que se ouvia mais os estalidos que a voz dos locutores. Ainda assim Seu Aristóteles foi até ele e ficou tentando sintonizar, até que achou a estação que queria, então encostou a orelha no autofalante do rádio e ficou escutando. Distante uns dois metros dele e do rádio eu tentava entender alguma coisa, tudo para mim não passava de ruídos.

    Terminou o programa, ele desligou o aparelho e foi saindo. Curioso perguntei algumas coisas:
- Seu Aristóteles que rádio era?
- A Rádio Bandeirantes; a resenha da tarde. 
- Mas tava ruim ouvir.
- Já estou acostumado. 

   Eu fiquei imaginando que ele queria acompanhar os times que estavam naquela semana na  Loteria Esportiva para assessorar seus clientes, não era para isso. Queria mesmo era ouvir os comentários sobre o jogo da noite anterior e completou a informação com o que de mais importante julgava: "O Corinthians perdeu." Agora, passando dos quarenta e cinco anos desse curto diálogo, fiquei com a impressão que Seu Aristóteles era corintiano e o ano de 1974 foi mais um de frustração, pois que, as suas sobrancelhas baixaram e a voz saiu triste.

Abraço, Marconi Urquiza

PS:
Eu me inspirei no primoroso livro de crônicas A VIDA QUE NINGUÉM VÊ  da repórter  Eliane Brum. 

Originalmente escrita em 2018.

     

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Os dois natais.

Feliz 2020


Há algum tempo eu gostava de dizer que lá em casa,  casa dos meus pais, tinha dois natais.
   
O Natal de dezembro e o Natal da Semana Santa.

O Natal de dezembro era festivo, colorido e cheio de amigos. O Natal da Semana Santa me parecia mais só da gente. Fazíamos as refeições todos juntos, da quinta ao domingo de Páscoa. Sentia que naqueles dias a liga familiar era maior.

O Natal de dezembro eu aguardava ansioso,  presentes de natal, roupa nova, aquela fugidinha para beber cerveja com os amigos escondidos dos nossos familiares.

No Natal da Semana Santa não tinha parque,  era mais comprido que o outro Natal.  No meio, havia, invariavelmente, o trabalho na farmácia de papai. A viagem para Recife no domingo.  A saudade plantada no sabor do bacalhau. 

No Natal de dezembro eu gostava de sair de casa logo após o jantar. Percorria as ruas olhando as luzes,  simples, que iluminavam o quadrilátero da Praça Pedro II. As barracas,  o som de Bosco Presideu tocando os sucessos de Roberto Carlos e as vinhetas de desejo de bom natal e ano novo das empresas  de Bom Conselho. 

No Natal da Semana Santa ainda dava para jogar um bolinha no Clube dos 30 na quinta-feira. Naquele encontro de amigos que ficaram com os que saíram da cidade.

E no Ano Novo? Na Semana Santa não tem a virada para o novo ano, só os mais fiéis católicos buscavam encontrar a Aleluia. O simbolismo cristão para encontrar Cristo.

Dois dias depois do Ano Novo, a realidade já batia à porta, às vezes apagando tanta festa,  tanto amor.

Pois bem, já para encerrar esta crônica eu me lembrei de uma frase que iniciei outra crônica, inacabada. 

Eu pensei que era só lembrança,  mas era saudade, que virou lembrança da saudade sentida.

Feliz Ano Novo. 

Abraço,  
Marconi Urquiza. 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

ABRI A PORTA E SENTI O CHEIRO DO MUNDO

SE GOSTOU, COMPARTILHE.


Imagem representativa do artigo
(*)

Abri a janela e vi o mundo.
Abri a porta e senti o cheiro do mundo.


Depois de escrever as duas frases acima eu me lembrei de uma obra do pintor Cícero Dias: "Eu vi o mundo ...  ele começava no Recife". Parece que eu despertaria para uma nova realidade e ela começou na Rua da União, 263, Hellcife.

Nesta segunda-feira eu comecei a participar de um curso visando me preparar para apresentar um projeto pelo Funcultura do Estado de Pernambuco. Grande parte do dia eu ouvi e prestei atenção no instrutor, que com muita paciência ouvia as pessoas se manifestando, sem as interromper.

De início, nas apresentações das intenções de cada um eu ouvi e fiquei de se certo modo admirado com a variedade de possibilidades de produções culturais vinda da população. Grande parte das pessoas parecia representar algum coletivo e as suas manifestações culturais, alguns, como eu, buscavam verificar se as ideias individuais poderiam ser concorrentes para os recursos do Funcultura.

Dentre os presentes haviam negros, parte deles eram os mais falantes, o que mais se manifestavam e manifestaram as suas dificuldades em face do racismo. O Brasil sabe, mas continua devendo.

A outra parte, com variados tons de pele, só ouvia, aqui e acolá se escutava palavras de apoio e reconhecimento ao que falavam. Em alguns eu senti tensão. Algumas palavras, de certo modo se repetiram: negritude, território (o da periferia, que vale para qualquer pobre), ocupação de espaço(política também? Não ficou claro), reparação histórica, etnias, branquitude, cultura racial, narrativas pelo vencedor. 

Ainda escapou alguma coisa neste sentido: Identidade, pertencimento, símbolo dos vencedores. Em algum momento eu escrevi na minha caderneta: Branco X Preto; assim com as iniciais maiúsculas. 

branco x preto; preto x branco; preto x branco; branco x preto.

É conflito em potencial,  é uma realidade que parece se formar à partir de um pensamento de oposição, de menos oportunidade. O Brasil sabe,  mas ainda deve.

Sabe, fiquei matutando e ao mesmo mesmo tempo tentando ouvir o que as pessoas diziam. Em certo momento me lembrei que a melhor forma de começar a evitar reproduzir o racismo é quando se referir a alguém que o faça pelo nome. O meu é Marconi e o seu? 

É pela pessoa. Pessoa.

Olhe para a pessoa. Se for criticar, critique o comportamento e não nomeie o comportamento por qualquer viés discriminatório.

Em certo momento eu me lembrei, como reflexão, que há uma discriminação latente em muita gente. Como exemplo, cito a que há em pessoas oriundas de certas regiões contra outras nascidas em outras regiões do Brasil. Para ser honesto, não vou dizer que li ou ouvi dizer, eu senti e vivenciei.

Nesta semana mesmo, um repórter, em uma entrevista que vi na TV, se o que a pessoa sentia era real ou era o que ele achava que sentia, como se houvesse um viés psicológico auto induzindo o processo de discriminação. Isto também me ocorreu quando reclamei há muitos anos, que mesmo tendo um ótimo desempenho profissional  em  certo período as oportunidades de crescimento na carreira de bancário não ocorriam. No meu caso, o período foi de 8 anos.

A discriminação corrente não é apenas direta, ela é sutil. O preconceito é tão entranhado na nossa psique que, quase não nos damos conta. Eu vi a diversidade naquela turma e tentei ter um olhar neutro, busquei limpar a minha mente de qualquer pensamento preconcebido.

Pois bem.

Quando eu cheguei na sala, eu abri uma porta, apenas um equipamento que me permitiu entrar em um ambiente diferente do corredor. Perto do meio dia eu comecei a achar que uma janela se abria.

Quero fazer agora um aparte no que escrevi antes. 

Nos últimos quatro anos eu fui perdendo a minha capacidade de observar a diversidade. Saí do trabalho por aposentadoria e aos poucos comecei a frequentar ambientes onde há uma certa uniformidade.

As pessoas com as quais convivo com maior frequência são, quase todos, ex-funcionários do Banco do Brasil. Neste ambiente e nem no Whatsapp com este grupamento não se fala em política, futebol clubista e religião. A restrição advém pela razão de que estes temas geram conflitos. Digamos que aqui ocorreu a primeira uniformidade.

Neste ambiente, com estas pessoas, mesmo àqueles em que a sua origem profissional seja distinta, somos, quase todos de classe média e de pele mais clara. Pode se falar em uma segunda uniformidade.

Este grupo com os quais me relaciono gosta muito de futebol. Falamos de futebol, das arengas das peladas, mas não falamos da preferência individual para seus clubes de Recife. Poucos vestem as camisas do time que torcem. Caminhamos para a terceira uniformidade.

Para não forçar a barra, vou citar outro aspecto que me leva a pensar como a minha vida foi ficando uniforme. Os grupos com as quais convivo têm todos mais de cinquenta anos. Na maioria, eu imagino, não dialoga com outros jovens, afora as filhas e filhos e é majoritariamente masculino.

Bem. 

Ontem eu me dei conta que a minha visão de vida estava tão estreita que até me surpreendi ao ver vários pequenos comércios nas ruas adjacentes à rua União. Por quê? Por que meu vasto mundo ficou restrito, uma nesga em uma janela no subsolo.

Chegou à tarde, o sono me derrubou, aqui e acolá eu pescava as informações técnicas e os comentários que os participantes falavam. Quando sai de lá eu comecei a elaborar a experiência do dia.

Quatro horas depois, ao voltar para a casa, me vieram as frases do início, não as anotei e quase as perdi.

Mesmo com toda a subjetividade que nos é inerente, é uma questão de escolha ver a realidade.

O mundo é redondo. Mas, não é perfeito. 

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
                  "Drummond - Poema de Sete Faces".


Terça, 10 dezembro, 2019.
Abraço, Marconi.




PS:

A ILUSTRAÇÃO É UMA Reprodução parcial do quadro de Cícero Dias: Eu vi o mundo ... ele começava no Recife*
(*) Fonte: 

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Vamos falar sobre Política e a preguiça de pensar





Há uma frase de que gosto muito e que, para mim, é a expressão da presença política: “Os ausentes nunca têm razão”. Embora pudessem estar com alguma razão, eles a perdem pelo fato de se ausentarem.


A ideia para o título desta crônica veio do filme: "Precisamos falar sobre o Kevin." Kevin é o filho da personagem Eva que mata o pai e a irmã à flechadas. Uma tragédia que poderia ser evitada, se Eva tivesse provocado o marido para conversar sobre a personalidade maléfica do filho.

Aqui dou uma quebrada. Algumas vezes, creio que muito dos leitores devam ter ouvido algo assim: "Eu não avisei!". Ocorreu o aviso e assim mesmo o erro foi cometido.

Desde o início da Operação Lava Jato para o bem ou para o mal, ou para ambas as situações, em concomitância, a nossa opinião foi sendo conduzida, quase como uma regra, a favor dela e contra os "bandidos", ou contra os elementos fáticos dela e dos seus protagonistas. Elementos fáticos de fato e os elementos fáticos de "não fatos".  Em resumo, uma oposição entre os fatos comprovados e os "fatos criados por uma narrativa deliberada", intencionados para atingir um objetivo.

Antes disto, a maioria da população se cindiu em a favor e contra. A partir de 2013, tal cisão acabou conduzindo o pensamento do brasileiro para ser um anti, UM ANTI TUDO QUE NÃO FOSSE A SUA FORMA DE VER O MUNDO.

Se alguém olhar os fatos e os interpreta diferente, ele é contra, se não opina, o viés do ANTI TUDO, também interpreta como contra ao MEU PENSAMENTO.  Vou enfatizar, MEU PENSAMENTO. 

Neste ponto vou abrir um espaço para uma experiência pessoal. Sou uma mistura de credulidade com um ceticismo forte. Sou crédulo por que tendo a confiar nas pessoas e sou cético por necessidade. Fui muito vezes enganado ao acreditar que havia boa vontade em muitas pessoas. 

A experiência me fez quase acreditar que o pensamento dos telejornais era o meu. Passei meses assistindo as informações que a Lava Jato produzia. De tanto ouvir eu fui deixando de ponderar aquilo que eu recebia por meio das sucessivas edições do Jornal Nacional, Jornal da Record, Globonews, sites G1, UOL, Estadão, a revista Veja e outros noticiosos menos relevantes. Todos pareciam repetir as mesmas informações, até a Rádio Jornal, que tendo a escutar muito, vinha com o mesmo tom. 

Em certo momento, eu senti que a minha mente estava sendo dominada, nela já não tinha espaço para fazer uma reflexão, até que certo dia eu parei: "Não vou mais assistir e ler esses noticiários." Parei e passei muitos meses sem assisti-los ou os ler.  Mas o processo era massacrante, então comecei a buscar outros meios de me informar ou ouvir opiniões diferentes, que me propiciasse uma certa capacidade de ponderar o quanto se ouvia era verdadeiro, inconteste, ou haviam opiniões diferentes. Assim eu fui saindo do lameiro que me prendia no pensamento único. O MEU PENSAMENTO agora era múltiplo. Comecei a perceber nuances e a minha alma não foi domada.

Bem, esta foi a minha realidade. Ainda vez por outra eu penso na frase de Nelson Rodrigues: "Toda unanimidade é burra"; eu acho que ela é viciante. Provoca um bloqueio que torna muita gente incapaz de ouvir o aviso: "Eu não disse!" Não é o meu caso viver avisando, pois não sou profeta e nem adivinho.

Por causa do acirramento desta forma de reagir, do radicalismo que muita gente se porta ao tratar do assunto. Da prática corrente do linchamento sem consequência nas redes sociais. Da instigação do ódio contra quem quer que seja, contra quem quer que não tenha dado motivo pessoal, insuflado por uma retórica que domina o bom senso e pelo uso da tecnologia que não dar nenhum descanso à mente dos adoradores do novo bezerro de ouro: A raiva contra qualquer humano que seja diferente do nosso modo de ver. Por causas destas e de outras circunstâncias, a maioria tem deixando de discutir uma coisa de imensa importância: A POLÍTICA.

Vamos tentar ilustrar.

 Na "política das eleições", tudo que os candidatos querem é insuflar as nossas emoções mais primárias e universais: o medo, a raiva, o ódio, a vontade de brigar, a vontade de matar, a idolatria. Com isto, muitas vezes dominam os pensamentos e provocam um impacto duradouro na nossa capacidade de sermos tolerantes.  Isto também tem um efeito, na era de antes das eleições turbinadas pela internet ainda se via alguns candidatos mostrarem seu programa de governo. Isto, por hora, perdeu importância.

Na "política após as eleições”, a gente, nobres eleitores, viramos passageiros. Muitas decisões parecem mirar a maior parte da sociedade, mas miram exatamente o contrário. Cá de longe, ficamos apenas no "OBA!; ÔHHH! EITAAAA!. E muitas vezes apenas lamentando. 

Por causa das decisões políticas, que são diárias, a gente precisa falar de Política. Não da forma doentia e viciante como costumar ocorrer. Mas do impacto que ela tem nas nossas vidas. Vejam alguns exemplos:
- Quando falta apoio para salvaguardar o oceano? Foi uma decisão política que decidiu.
- Quanto se abriu de todo mundo andar armado? Foi uma decisão política.
- Quando se fez a reforma da previdência?
- Quando se constrói uma estrada?
- Quando se dá subsidio a uma indústria?
- Quando se criou o SUS? 
- Quando se privatiza uma empresa pública?
- Quando se quer transformar a nossa economia para um modelo diferente?
- Quando se constrói e se mantem em funcionamento um hospital público?
- Quando se cria uma universidade pública ou se estrangula ela com falta de recursos?

Basta imaginar um pouco. Basta imaginar um pouco para ver como não podemos nos omitir.

A Política precede a economia, a economia favorece ou desfavorece um político, mas a Política e a força do estado é que podem transformar a minha vida, a sua, de muitas pessoas para melhor ou para pior.

Pois bem, é sobre estes aspectos da Política que a gente precisa conversar. Discutir para compreender. Discutir para não sermos passageiros de uma agonia, que às vezes se prenuncia sem nos darmos conta. 

Vamos discutir Política sem apaixonar, pois, sem a cegueira da paixão poderemos ver com toda clareza o que é discurso, retórica e o que é fato ou o que certos discursos prenunciam nas entrelinhas. 

Mesmo distantes, mas ao se ter consciência da realidade política, podemos usar os meios digitais para dizer aos políticos como estamos vendo a sua atuação e assim obter um mínimo de capacidade de não sermos meros passageiros, pois nos dias atuais somos meros fantoches, influenciados por mensagens bombardeadas diariamente, incessantemente, gerando na nossa mente a pior das acomodações: A preguiça de pensar.

Abraço, 

Marconi 

PS:
Uma resenha sobre o filme "Precisamos conversar sobre o Kevin", neste link:


O poder revela ou transforma uma pessoa?

  imagem: Orlando/UOL.            Um papo na última segunda-feira entre aposentados do Banco do Brasil que tiveram poder concedido pela empr...