sexta-feira, 16 de julho de 2021

Festa do Tchac-Tchac




 A cidade estava elétrica aguardando o domingo seguinte. Muitas pessoas suavam as mãos na expectativa.

            Na farmácia de papai, vez por outra, amigos se encontravam e a pergunta era uma só:

            — Você vai?

            — Vou! Já consegui uma carona.

            E os comboios foram se formando. A coisa fluindo. A comunidade se apoiando, se unindo, se ajudando. Sem mesquinharia.

            Meu pai tinha dois carros. Um Corcel I e uma Rural. Ele dirigiu o Corcel e eu conduzi a Rural. Devia ter um ano que era motorista, ainda de menor.

            Dirigir menor idade era muito comum e a situação justificou a liberação para eu ir a outra cidade.

            Vários carros de papai foram batizados. Ele tinha essa mania. Antes teve a Belina Marta Rocha, o jipe Osaka. O Corcel era o Cavalo Branco. A Rural, mudou de nome, virou Sofrida. Quando queria alguma coisa dizia: Vai na Sofrida. Apelido curioso. Quando a comprou, o carro estava muito maltratado. O dono anterior, estragou tanto, que antes de utiliza-la passou por uma reforma inteirinha.

            Daqui para frente é quase tudo imaginação. Alguns fragmentos espaçados juntei para contar essa história.

            Imagino que ocorreu em um domingo.

            Imagino que a fila dos carros começou a se formar nas Cinquenta Casas, bairro de Bom Conselho, em Pernambuco. O asfalto era um sonho, apenas isso e a saída da cidade era por ali.

            Sete horas a fila já era imensa. O carro do prefeito na frente. Muitos chegaram a pé e conseguiram a sua carona naquela fila.

            Curioso, espichei o pescoço pela janela do motorista e olhei para trás. A vista se perdeu na fila dos carros, quando ela fez a curva para a rua Vital de Negreiros. Me arrisco a dizer que já estava perto da prefeitura.

            Sete e pouquinho veio o primeiro aviso. O horário de Bom Conselho era de dez horas. O destino ficava a 43 quilômetros dali. Em um Parque de Exposição de Animais.

            Sete e meia. Hora de sair. A fila começou a correr devagar. O enorme comboio não passava de 60 km/h.

            Nessa altura a imagem sumiu e só fui acha-la faltando 9 quilômetros para a nossa redenção.

            Passamos por Brejão naquela pisadinha de andar em fila. Após essa cidade, fomos subindo. Subindo e descendo sem muito perigo. Depois desse trecho pegamos uma espécie de planalto. Já perto da entrada para Correntes, se iniciou uma suave, mas longa descida. Alguns quilômetros.

            Nessa parte da estrada se via alguns carros à nossa frente. Nada muito expressivo aos olhos.

            Quando a gente foi se aproximando, de onde é hoje a Churrascaria da Paz, é que tive a primeira visão que me deslumbrou. Fizemos a curva à esquerda e olhei para frente. A fila de carros se perdia quinhentos metros depois, entrando em uma curva à direita.

            Tocando o carro devagar nesse ponto, chegamos na mesma curva, que era mais alta que o resto daquele trecho na estrada. De novo vi os carros fazendo outra curva, agora, uma bem aberta à esquerda, como um arco gigante. Outra imagem que deslumbrou.

            Em uma velocidade baixa os carros seguiam para o destino, mas o fim da fila não vi, estiquei o olho para o retrovisor e a cobrinha da esperança também se perdia de vista.

            Um pouco depois a gente entrava em um imenso trevo arredondado. Viramos à esquerda. Mais alguns minutos paramos. A fila agora era de gente. Milhares esperançosos.

            Entramos no parque e já a alguns metros começamos a ouvir um som de thac-tchac. Debaixo de um galpão, dezenas de pessoas armadas com pistolas, disparavam esperança e saúde nos braços das pessoas.

            Saímos dali para a Festa da Vida, vacinados contra a meningite.

            1975.


            Marconi Urquiza (16 anos).

4 comentários:

  1. Mais um belo texto. Você tem mania de escrever bem sobre boas lembranças. Isto é bom! É assim que guardamos tesouros e construimos a vida.

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  2. O texto narra o sentido da vida, na estrada da esperança. Como é bom ler uma narração que dá nobreza ao fato.

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  3. Eu gosto de ler seus textos porque nos coloca dentro do fato.

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  4. Assim mesmo, era uma pistola que ia a todos os braços. Cadê o risco da contaminação, não se falava nisso.

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