sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Cuia - o bom humor de Luís Fernando Veríssimo.

 


Cuia

Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé ― segundo ele, “mais prestimosa que mãe de noiva” ―, tem sempre uma chaleira com água quente pronta para o mate. O analista gosta de oferecer chimarrão a seus pacientes e, como ele diz, “charlar passando a cuia, que loucura não tem micróbio”. Um dia entrou um paciente novo no consultório.

― Buenas, tchê ― saudou o analista. ― Se abanque no más.
O moço deitou no divã coberto com um pelego e o analista foi logo lhe alcançando a cuia com erva nova. O moço observou:
― Cuia mais linda.
― Cosa mui especial. Me deu meu primeiro paciente. O coronel Macedônio, lá pras banda de Lavras.
― A troco de quê? ― quis saber o moço, chupando a bomba.
― Pues tava variando, pensando que era metade homem e metade cavalo. Curei o animal.
― Oigalê.
― Ele até que não se importava, pues poupava montaria. A família é que encrencou com a bosta dentro de casa.
― A la putcha.
O moço deu outra chupada, depois examinou a cuia com mais cuidado.
― Curtida barbaridade. ― Também. Mais usada que pronome oblíquo em conversa de professor.
― Oigatê.
E a todas estas o moço não devolvia a cuia. O analista perguntou:
― Mas o que é que lhe traz aqui, índio velho?
― É esta mania que eu tenho, doutor.
― Pos desembuche.
― Gosto de roubar as coisas.
― Sim.
Era cleptomania. O paciente continuou a falar, mas o analista não ouvia mais.
Estava de olho na sua cuia.
― Passa ― disse o analista.
― Não passa, doutor. Tenho esta mania desde piá.
― Passa a cuia.
― O senhor pode me curar, doutor?
― Primeiro devolve a cuia.

O moço devolveu. Daí para diante, só o analista tomou chimarrão. E cada vez que o paciente estendia o braço para receber a cuia de volta, ganhava um tapa na mão.


        Hoje não imaginei nada, minha mente branqueou e a dor na lombar, renitente, teimosa como sempre, visto que não me larga a uns quinze anos, incomoda a uma semana. 

        Ela vai e volta e diz:

    — Usa aquele spray antigo, aquele lá verde.

    — Qual? 

    — Aquele lá, que começa com B. 

    — Mas que chata! 

    — Olha lá debaixo da pia do banheiro, tá lá, eu vi ontem. 

    Levantei e fui, não vi. 

    — Ei, não vi o spray verde! —  eu disse à dor teimosa.

    — Tá lá, vem que eu vou te mostrar, e fomos. 

    — Tá ali embaixo, por trás desse monte de embalagens — foi assim que a dor teimosa me mostrou o spray de Bengué. Bálsamo Bengué.


        Por hora, é só.

        Abração, Marconi Urquiza.


Observação:

        Cuia, faz parte do livro O analista de Bagé (1981), em que o escritor apresenta como protagonista um psicanalista gaúcho que não leva jeito para cuidar da saúde mental das pessoas.

4 comentários:

  1. Você nos brinda com o grande Veríssimo trazendo cultura, regionalismo e muito humor. De quebra, sua dor na lombar, ajuda a criar a sua mini crônica em forma de diálogo bem humorado, com a dolorosa lombar, e de forma bem descontraída.
    Agora, se o bengué não resolve a dor, canela de velho pode ser a solução. 🤣🎯
    Valeu Marconi, simbora alongar, massegear e livrar destas dores continuadas.


    "Os tristes acham que o vento geme;
    Os alegres acham que ele canta."
    Luis Fernando Verissimo

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    Respostas
    1. Amigo Oceano, muito obrigado. Ainda bem a dor da lombar deu uma trégua. Abração

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  2. É preciso muita criatividade para, num momento de "branco total", confessar esta dificuldade e, para não "passar em branco", ainda brindar-nos com uma história de Luiz Fernando Veríssimo. Eu esperava que o "Analista de Bagé" fosse usar, no cleptomaníaco, a terapia do joelhaço. Mas ele se limitou a tapas na mão.

    Melhor ainda foi o motivo do "branco", ou seja, sua dor lombar e o diálogo dela com você. Ela tem razão. O Bálsamo Bengué continua sendo meu preferido, mesmo com a "invasão" de outros produtos no mercado, como as pomadas em gel.

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