Me inspirei na canção de Roberto Carlos, O Homem, para dar o título desta crônica. Ela começa assim: Um certo dia um homem esteve aqui... Tinha o olhar mais belo que já existiu...
Um certo dia eu achei que o final da vida de papai, os seus últimos meses de vida precisava ser contado, era um projeto de uma escrita, não saberia o que iria encontrar, já haviam se passado 25 anos desde a sua morte.
Comecei a conversar com as pessoas, um pouquinho aqui, outro acolá, a cada conversa muitas outras anteriores foram saindo do anonimato do meu esquecimento para uma recordação ativa. Como no dia em que recebi a sua arma salpicada de sangue e o pacote que ele trazia de Recife para finalizar a campanha política em 1982 e do papo que tive com uma das filhas do seu Herbelino Morais, sobre ter poderes especiais de fulminar os assassinos com um "raio cósmico". Os 1.000% da frustração.
Um certo dia sentei à mesa da sala de casa com o rascunho ilegível do que seria o livro O último café do Coronel. Havia dezenas de páginas escritas à mão com lapiseira. Um terço, talvez um terço foi possível ler e digitar posteriormente, o resto está apagado. Era o rascunho iniciado em 2007.
Naquele dia de junho de 2021 comecei a escrever às 4 horas da manhã e ia até às 7 horas. Tomava café e ia esperar a freguesia da Safe Clean João Pessoa entrar em contato. Após às 18.00h recomeçava a escrever e ia, quase sempre, até às 22h.
Todos os dias, de domingo a domingo foi essa rotina. Foram 30 dias de pau a pavio. Após 30 dias eu tinha em mãos o primeiro rascunho do livro. O que acho excepcional, é que após muitos anos de pesquisa, reflexão, ideação, ao iniciar a escrita ocorreu como se eu estivesse ouvindo um ditado da professora chamada memória.
Peguei este primeiro original e fiz uma revisão com ajuda do aplicativo Clarice Ai, depois enviei a uma professora de literatura da UFRJ para a leitura crítica. Entre as várias observações, veio que os diálogos eram ruins. Encostei o livro por alguns meses meses e só então voltei a ler e ajustar os diálogos e outros pontos.
Com este original criticado e revisado passei para alguns amigos lerem. Um dos feedbacks foi peremptório. Não era um livro de ficção, não tinha emoção. Parecia mais um relatório, seco. Desta vez, diante das observações importante deixei o livro guardado por mais de seis meses, até que eu visse as observações sem a emoção que as críticas suscitam. Foi como curar o cimento fresco antes de prosseguir com a construção.
Depois desses mais de seis meses comecei a ler de novo o livro. Pense em algo espinhoso, a revisão de um romance. É lento, é chato, é fundamental, é cansativo, exige perseverança. E fui lendo, e fui fazendo as conexões entre as frases, entre os capítulos, entre as partes, entre os personagens, entre eles e eu. Senti que eu precisava entrar no livro e olhar as coisas pela perpectiva dos personagens. E fui devagarinho, frase a frase, trazendo as emoções que os persosagens poderiam sentir. Muitas vezes eu estava dentro daquele filme que corria na minha cabeça e chegava perto demais, sentia medo e me afastava, depois voltava devagarinho, até a uma distância segura para garantir a emoção dos personagens e minha saúde mental. Era preciso ter verossimilhança e cada personagem se parecesse com gente de verdade, sem serem estereotipados.
Isto foi lento, repetidas vezes parava e ficava imaginando o que tal personagem deveria sentir diante da cena que vivia no romance e ao achar este ponto, escrevia ou apagava uma frase de "relatório", seca e objetiva, sem a subjetividade que uma pessoa tem. Foi como usar a moenda para fazer o fuba fininho, repete-se a operação muitas vezes.
A trama foi avançado, a violência crescendo, inspirado em vários episódios violentos ao longo de vários anos distintos que ocorreram na Grutas real. A ironia, o medo, o susto, a raiva, a frustração, a prostração, o silêncio, o ódio. O ódio, o ódio que veio do passado, foi para o presente e caminhou para o futuro. Quando compreendi essa questão do ódio, foi como se eu tivesse descoberto uma questão sociológica, de um comportamento brutal, de uma cultura em que matar lava a alma e era uma questão de valor social. Por incrível que parece, a sociedade antiga admitia isso como valor de hombridade.
Chegou a vez do personagem Mário, inspirado em papai, trazer as emoções desse personagem foi a coisa mais próxima do desastre que pude chegar, talvez as emoções mais fortes do livro. Li quando escrevia e só fui ler 4 anos depois de escrita. Senti o mesmo murro que me tirou o ar quando tentei em 2021 para revisar esse trecho.
Recebi várias sugestões que fui incorporando ao livro, em certo sentido, é uma obra coletiva. Em alguns pontos do livro tenho a sensação é que foi uma intuição, talvez um ditado. Três partes foram escritas de tal forma que quase não precisou de uma revisão, em duas dessas havia chegado de João Pessoa, de repente chegou forte uma ideia, juntei várias folhas de A4, duas canetas e escrevi na mesa da cozinha, torcendo para não ser interrompido. Escrevi de um impulso só, até a ideia se esgotar, ao final, nas duas oportunidades, tinha metade de um capítulo e outro inteirinho.
A última observação de melhoria do livro foi sobre o personagem Jaime Guerra. Mais de 15 dias pensando e nenhuma ideia me ocorria, de repente a ideia chegou inteirinha, mais uma vez corri para a cozinha, desta vez em domingo cedo e comecei a escrever, um pouco mais de uma hora eu tinha escrito o destino desse personagem. Posso dizer que nele tem cheiro, cor, sabor e dor.
Ao longo do livro, as coisas subjetivas foram entrando através de muitas intuições, arrisco a dizer que pessoas que não vi me ajudaram a escrever partes cruciais para que ter concluído o romance.
Minha esposa, fez a primeira leitura logo no início, está novamente o lendo, cada capítulo que ela lê abro no início, no último domingo abri o capítulo 13 e li: No silêncio de cada noite sem comício e sem carro de som, aquela eleição foi ganhando contorno de jogos de azar.
É uma síntese, o corolário de um contexto em que a disputa expulsa o bom senso e os limites da sensatez são extrapolados para um ódio crescente.
Como está frase há várias outras, por exemplo: Fora uma escolha sem volta e uma amizade que terminou, pegando a estrada do ódio. No certo dia em que escrevi esta frase o sentimento foi de pesar. Foi como eu saisse da ficção e entrasse nos fatos reais que me inspiraram. Agora mesmo viajei para o dia em que estava conversando com papai na frente da sua farmácia e ele confessou para mim que tinha se arrependido de ter votado em um candidato em uma convenção. Achei aquilo estranho, papai ter me dito este sentimento, ele que pouco conversava conosco.
Quando li:"No silênio de cada noite sem comício e sem carro de som, aquela eleição foi ganhando contorno de jogos de azar" eu senti pesar, quase uma tristeza. O que mais queria lá 1999 era escrever uma história, desde então havia escrito três romances, O último café do Coronel foi o quarto. Ali, no sofá, com livro nas mãos, fiquei pensando a respeito do esforço, da soma da técnica com pesquisa, com a escrita bruta e a refinada, que é o que fica no livro, e com pesar pensei que outro romance vai ser difícil, pois o momento em que vivo, os principais fatores orgânicos estão direcionados para a atividade de microempresário.
Resta-me um tênue desejo de escrever mais um romance, que eu acerte a minha rotina e enche meu coração de desejo para eu concluir A quinta forma de matar.
Bem por hora, é isto.
Abração, Marconi.

Grande Marconi,
ResponderExcluirSeu livro, O ùltimo café do Coronel, percorre as entranhas da sua alma, trazendo memórias boas e outras penosas. A obra final, é uma verdadeira terapia, onde você consegue lidar com o passado com mais suavidade, deixando a vida mais leve e sem rancores profundos, não obstante as fortes emoções guardadas na alma.
Simbora. Curta a vida, a vida curta, com sabedoria. 🤝
Amigo Oceano, muito obrigado pelo comentário. Verdade, foi uma terapia. Abração
ExcluirCaro amigo, Quanta informação valiosa para quem se acomoda na primeira versão e não cuida dos detalhes. Sucesso colega. Um texto para ser lido várias vezes.
ResponderExcluirAmigo Ademar, muito obrigado pela observação a respeito do esforço de ter um livro pronto. Não havia percebido tal minúcia se você não comenta.
ExcluirMeu amigo, você nos fez conhecer as dificuldades que você teve, para contar em forma de ficção, sua perda dura e sofrida. Tão real e tão precoce. É difícil traduzir em palavras, mas fiquei emocionado. E olha que ainda não li seu romance. Imagine o que vai acontecer, quando eu o ler.
ResponderExcluirAmigo Brandão, muito obrigado pela sensibilidade.
Excluir