
Desde de pequeno eu sou fascinado por história. A História do Brasil clássica ou a História mundial me atraía ao mesmo tempo que me entediava pela falta de calor, mas aquela história miúda, a saga das pessoas me deixava de boca aberta, ligado, escutando tudo.
"Olha, ontem foi difícil chegar aqui de volta, a serra de São Pedro estava escorregando tanto que vi muitas vezes na beirada do barranco o bode lá embaixo comendo mato." Aí o nego enfeitava, mas na mentira era tudo verdade, meio aumentada.
Meu pai tinha uma farmácia, ele, além dos inúmeros fregueses, era um homem com uma infinidade de amigos, muitos dos quais passava por lá quase todos os dias. Diversas vezes eu encostava em alguns e perguntava algo só para ouvir suas histórias. Foi assim que descobri por que Zé Mole era Zé Mole, por que meu pai era o Dr. Gia, porque Pavão tinha esse apelido. Eram histórias de gente, apetitosas.
Certa vez, lá pelos meus treze anos disseram que em Bom Conselho morava uma alemã no Alto de Zé Fleixeira. A verdade é que nunca a vi e poucos souberam dela. Nesse tempo, alguma coisa já havia zoado na minha cabeça sobre a segunda guerra mundial.
Em 1979 comecei a estudar na Universidade Federal Rural de Pernambuco, nela, de fato, encontrei uma alemã e em uma das suas aulas ela contou a sua origem e que seu pai passou um ano fugindo dos russos, pois eles matavam qualquer um que estivesse vestido com uniforme do exército alemão. Ele fugiu da antiga Checoslováquia pelo meio das florestas até entrar no território da Alemanha ocupado pelos Estados Unidos.
Nesse tempo eu não sabia sobre o holocausto, então para mim todo alemão era nazista. Bem, voltemos para a professora. Suspeito que o nome dela era Hildegard.
A aula acabou, eu me aproximei dela e perguntei por que o seu pai foi nazista. Também não sabia nada sobre o nazismo, só que perderam a guerra e que eram maus. Vamos para a professora de novo. Senti ela respirar devagar, não sei se estava irritada ou compreendeu a minha ignorância, depois desse silêncio ela respondeu com uma frase que me faz recordar as culturas, quaisquer que sejam. Me faz hoje recordar as culturas avassaladores, como a que está em evidência no Brasil: a da intolerância com o pensamento diferente.
A frase foi esta: não dava para não ser nazista. Não dava para NÃO ser nazista.
Escrevi isto tudo por que nesta semana esteve em minha mãos o documento de uma apartamento que conta um pedacinho da história de muitas famílias com sobrenomes bem diferentes dos nossos de origem portuguesa ou espanhola.
Schwartz, Sandes, Zisman, Botshkis, Rabay Karam, Schulman. São nomes de famílias relacionados com um dos apartamentos do edifício Marcílio Dias (Recife) desde a primeira escritura, em 26 de setembro de 1960.
A dona atual tem 96 anos, você viu uma pessoa com 96 anos lúcida?
Quanta história tem essa senhora?
Vamos voltar a ler aqueles nomes com cara de sobrenome alemão. Quanta história eu ouviria se pudesse saber a razão deles terem esse sobrenome, se eram emigrantes, abrasileirados pela naturalização, se fugiram de algum pogrom antes da segunda guerra ou se caíram fora antes do caldo contra os judeus virar de vez, se chegaram depois da guerra.
São muitas perguntas que um historiador pode cutucar até achar as respostas ou um escritor de ficção, inventar uma história e preencher com a imaginação tais lacunas que, para as quais eu não tenho resposta.
Mas para finalizar, enquanto por aí ainda ronda no mundo o antissemitismo, eu ouvi anos atrás ao atender um cliente uma resposta que me calou. Naquele dia eu afirmei que o seu sobrenome era alemão, "Não, meu sobrenome é israelita.
Na sua resposta, mais que uma constatação, transpareceu o orgulho que sentia da sua origem.
Entendeu?
Abraço.




