sábado, 17 de novembro de 2018

Era seguir em frente ou afundar.

Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, rasteje, mas continue em frente de qualquer jeito.... Frase de Martin Luther King.



1. Nem sei dizer exatamente  por que me veio esta lembrança.  Alguma coisa dita na festa de casamento de um amigo desencadeou este escrito.

2. Naquele 16 de novembro de 1982 eu apaguei.

3. Às 7 da manhã já estava dentro da Agência do Banco do Brasil de Afogados da Ingazeira.

4. Sentei-me à minha mesa costumeira e comecei trabalhar.  Mexi em alguns documentos, me desincumbi de algumas tarefas mais imediatas e sumi em um choro silencioso, as lágrimas desciam como rio Pajeú em cheia.

5. Não havia ninguém e a agência estava cheia. Era eu, meu choro e minha dor. Socorro Góes ia passando e me chamou: Marconi, Marconi, Marconi, eu abri os olhos, passei a mão neles e continuei.

6. Era eu, meu choro e minha dor. Dor que me acompanhou anos a fio. Mas não havia outro caminho, era seguir em frente.

7. Era seguir em frente ou afundar-se na tristeza em uma depressão que nem a morte livraria.

8. Eu fui em frente, segui correndo atrás da vida. Foi assim, tem sido assim. Livrar a alma do ódio.

    Papai havia sido assassinado seis dias antes.

Abraço, Marconi

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

A obra prima de um Brasileiro genial.

      Mas no tempo não havia horas.... Frase de Graciliano Ramos.

Mas no tempo não havia horas. Graciliano Ramos

1.  Há um bocado de tempo que eu pretendia falar sobre livros. Estava com dúvida se faria ou não.  Livros, muita gente ler, a maioria não, e além disso não tem sido um assunto da moda, a não ser a crise das livrarias no Brasil. 

2. Na última sexta-feira recebi um telefonema de um amigo me intimando a compilar em um livro parte das minhas crônicas, por causa disso me lembrei de uma história que correu minha vida dos anos oitenta até hoje.

3.  Um dia, entre 1983 e 1984, me inscrevi em  uma seleção interna no meu trabalho e eu nesta época fui apresentado a dois escritores, Othon M. Garcia e Graciliano Ramos. Livros escritos por eles fizeram parte de uma bibliografia, indicados para quem desejasse estudar como construir uma boa redação empresarial. Parágrafos curtos, objetividade, ação em primeiro lugar, justificativas depois.

4. Graciliano Ramos, meu vizinho. Ele de Quebrangulo, em Alagoas e eu de Bom Conselho, em Pernambuco. No entanto, este ilustre vizinho era completamente desconhecido por mim e só fui conhecê-lo por causa do Banco do Brasil.

5. Me tornei fã.  Mas tive, na época, enorme dificuldade para ler seus livros. Meu vocabulário não dava conta das muitas palavras desconhecidas e os dicionários analógicos de então desestimulavam a leitura.  Era um processo penoso e cansativo.

6. Bem, nesta semana fui atrás de um livro em um sebo virtual e passou pelo meu olhar alguns livros que li com gosto, dentre  eles alguns fininhos, pequenos no tamanho, enormes na história e gigantes na técnica do escritor.

7. Estavam lá: Ninguém escreve ao coronel; Crônica de uma Morte Anunciada, Vidas Secas.

8. Já li muitos livros, mas vou pegar emprestado a palavra de especialistas: Vidas Secas é um livro diferente. Você sabia que Vidas Secas neste ano fez 80 anos de publicação e continua tendo reedições?

9. É um livro que pode ser lido de uma tirada, mas não faça isso, mesmo tendo apenas 176 páginas. Só lendo com vagar o leitor captura a essência da sua história.

10. Li outros livros do Velho Graça. Vidas Secas li apenas no ano passado. Para ler até  mudei todo o meu modo de leitura. Um livro tão pequenino eu leria em algumas horas, levei 30 dias, mais até. Um coisa esquisita me ocorreu, quando faltavam algumas páginas para o final eu devolvi o livro para a estante dos livros a ler e ele quarou lá por muitos dias.

11.  Acho que a leitura tão lenta foi uma reverência a Graciliano Ramos, não queria correr com a leitura, desejava como um aprendiz ávido absorver a sua magistral técnica. Queria ser um grosseiro imitador, mas imitar um mestre é quase se transformar em outro. Enfim,  peguei-o de volta e conclui a leitura.  O meu sentimento de perda havia sido quebrado.

12. Mas, enquanto eu lia vários sentimentos foram se misturando. Em certos instantes pareceu que eu via pelos olhos de Fabiano, teve um momento que a chicotada que levou o menino mais velho me atingiu. E baleia, a cachorra,  coitada, doente de morte, quando ela levou o tiro de Fabiano para amenizar seu sofrimento eu cheguei quase a sentir a sua agonia de morte.

13. Quando acabei a leitura saí em busca das análises literárias. Li várias e resolvi fazer a minha.

14. A famosa frase enxuta de Graciliano Ramos esteve neste livro no seu maior grau. Mas não foi isso que me causou uma profunda impressão.  Todo o enredo se passa tanto no plano, do contexto físico quanto no temporal, em uma aridez de derreter almas, mas o Velho Graça não acabou por aqui, ele quis fazer o leitor sentir mais outras. Trouxe a aridez dos sentimentos dos personagens embalada pela aridez de uma situação social crítica. É uma impacto psicológico profundo trazido pela forma como o livro foi escrito e que se tornou o principal fator da percepção desse contexto humano extremo.

15. O Velho Graça não enfeitou, a dor não se enfeita, a fome emagrece, embrutece, o desamparo tira a esperança, a fé em algo melhor a renova, mesmo mínima, e tudo isto está no livro.

16. É um livro magistral e se eu pudesse indicar uma leitura, indicaria esta obra prima, obra prima de um brasileiro genial.


Abraço,

Marconi Urquiza

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Abstinência de Fake News.


       O fascínio da procura de uma rosa sem espinhos nunca está muito longe, e é sempre difícil de resistir.... Frase de Zygmunt Bauman.

     "O fascínio da procura de uma rosa sem espinhos nunca está muito
   longe, e é sempre difícil de resistir." Zygmunt Bauman

   Acordei na última quarta-feira com uma séria abstinência das fake news, na segunda o alívio foi total, na terça, gostosamente meu celular foi aliviado das mil mensagens que recebia, nesta quarta recebi o primeiro fake news pós eleitoral e passei para um site que fazia verificação, a resposta veio: serviço desativado, só atuaram durante o período eleitoral.

   Foram praticamente dois anos de fake, mais dois anos de uma intensidade de informações desinformante que moldou meu cérebro, vejo tudo torto.  Nos últimos meses a intensidade foi tanta que estou sofrendo de abstinência, Passei a desconfiar até da verdade.
  
   Há um dizer bíblico de São João que leciona sobre a mentira: E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. (João 8:32), podia se dizer assim: Dizei a verdade e a verdade vos libertará. Mas nem um nem outro tem impacto nos dias atuais.

   Esse é um registro bíblico forte, no entanto, é um ensinamento que parece passar ao largo  de muita gente influente, até mesmo dos profissionais da fé.

   A mentira fascina. 

   É assim mesmo, a minha impressão é que a mentira tem mais valor nas relações sociais que a verdade.  

   Você pode está questionando, e ele é santo, nunca mentiu? Claro que já menti, mas mentir para mim é uma sofrência imensa, a minha a cara me denuncia, por causa disso passei a evitar mentiras e até desenvolvi uma estranha síndrome. Muitas vezes me pego sentenciado, "tá mentindo", parece que minha mente ligou um desconfiômetro permanente para buscar sinais da mentira. Modulou a voz, ora baixa, ora alta, suaviza demais,  repetição de alguma parte de uma frase, olhar "profundamente" nos olhos do outro para passar convicção e por aí vai.

   Bem, estou falando das situações quando a gente se comunica cara a cara, mas, e hoje? Facebook, Whatsapp, Instagram, Linkedin. Você não vê as expressões, raro se escutar a voz, a conversa não existe, praticamente só há mensagens escritas, algumas de áudio, muitos vídeos preparados, vídeos espontâneos, e mais uma vez, por aí vai. O cérebro não capta essas alterações que citei acima. Engolimos muitas mentiras por desatenção e passamos muita mentira por maldade, por estarmos no meio de um grupo, por nos sentirmos anônimos ou pela avalanche que pode nos dar a segurança que não seremos punidos.

   Isto que falei é para os outros. Se existir alguma culpa, relevamos, se soubermos que indivíduos estão sofrendo, racionalizamos, imersos nesse vale tudo "decente".

   Mas se surgir uma mentira que nos prejudique diretamente. Qual será o sentimento? Vai xingar? Vai querer dar o troco? Vai lavar as mãos ? Tira por menos? E se essa mentira ou várias atrapalharem a sua vida? Como perder um emprego, perder a amada ou o amado? E se nós formos o inocente útil? Se o dano colateral nos atingir?

   Voltando para o fenômeno das fake news. Imagino que se precisa ligar o desconfiômetro, infelizmente devemos nos perguntar todo santo dia: Qual é a intenção da pessoa que criou essa mensagem. Tal comportamento não tem serventia apenas para as fake news, vale para quase tudo.

   A mentira fascina, a sua narrativa engabela os nossos sentidos. Sabe por que os estelionatários dão golpes?

  Desconfio que a verdade não me libertará, por que não sei onde ela está.


Abraço,

Marconi Urquiza



























sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Escritório das conversas avulsas, e no Zap?

       Diz-se da melhor companhia: a sua conversa é instrutiva, o seu silêncio, formativo.... Frase de Johann Goethe.
                               
Diz-se da melhor companhia: a sua conversa é instrutiva, o seu silêncio,formativo. Johann Goethe 
               
       Na semana passada eu estava na minha terra natal.  Em uma das conversas com meu cunhado eu perguntei por Luiz Clério, editor do jornal A Gazeta, e também quis saber a que horas eu poderia vê-lo, pois desejava discutir o projeto de transformar em livro parte das centenas de crônicas escrita por tio Florisbelo Vila Nova. 

     A resposta de Washington foi que ele, mais meu primo José Tenório Neto e  o amigo do meu pai, Naduca, se encontravam para conversar toda tarde. Como uma mágica da imaginação, explodiu em minha mente o título desta crônica e minutos depois a história começou a nascer.

     Bem, o primeiro, mais famoso e prestigiado escritório das conversas avulsas  da minha terra natal deve ter sido o cafezinho do Coronel José Abílio Ávila de Albuquerque, cuja tradição resistiu por muitos anos após sua morte.

    O cafezinho, se a memória não falha, se iniciava com a pontualidade britânica às cinco horas da tarde. Eu não sei o que conversavam, eu era criança e depois adolescente. A sensação que eu tinha quando via aqueles homens mais velhos sentados na varanda da casa do Coronel era de pompa e circunstância.

   Não era o único, havia outros escritórios. O mais mundano foi o da "esquina da fofoca". Este escritório ficava na rua e defronte de uma antiga barbearia situada na esquina das praças Pedro II e com a João Pessoa e por esta descia para o Corredor, apelido da rua Agamenon Magalhães.  Segundo as boas e, também as más línguas, ali só se conversava dos escorregões e putarias que rolavam na cidade.


   Meu pai também tinha o seu escritório das conversas avulsas, mas, me parece, que era um misto da jocosidade da "esquina da fofoca" com o cafezinho do Coronel. 

   Este de papai também começava no final da tarde, ele era meio escondido. Ocorria na velha Farmácia Confiança. Cinco, seis, sete amigos entravam e sentavam  na parte de trás, onde ficava o estoque de medicamentos. Nessa parte do prédio havia sofás, várias cadeiras individuais e a escrivaninha de papai. 

   Era um encontro de amigos. Amizade celebrada quase diariamente com muita conversa. Às vezes quando a risada era grande eu chegava mais perto para escutar.  Por ser uma conversa de adultos, papai sempre dava um jeito de me manter longe.

   Muitos escritórios das conversas avulsas começam na mesa de um bar, houve  época que eu dizia para a minha esposa: O bom lá não é a cerveja, bom mesmo, é o papo.

   Em um desses eu peguei carona. Ele já existia.  Quase toda sexta-feira um happy hour ocorria em um dos locais no qual trabalhei.  No início as palavras eram muito agressivas, depois foram amenizando e tivemos muitos bons momentos.
     
   Muito tempo depois daqueles escritórios da minha juventude, um escritório foi se formando espontaneamente após os expedientes no Banco do Brasil e ele me deixou saudades. 

  Nem sei quando começaram as nossas conversas avulsas. Com muita frequência a gente acabava o trabalho diário, com a agência fechada a gente parava na rampa de entrada do prédio do Banco do Brasil em Surubim e ficava batendo papo. Não sei quanto tempo, 10, 20 minutos e a conversa rolava solta, menos sobre o banco, creio. 

   Ali, na boquinha da noite, na vazia Rua João Batista, tão frenética pela manhã e parada às 18 horas, uma amizade foi se formando. Foi nela onde: eu, Negri, Jan e Ronaldo fizemos o  nosso escritório de amizades.

   Pois bem, um escritório das conversas avulsas que se preze é um encontro de amigos e não há só um assunto, qualquer assunto vale para se conversar. Ninguém lá quer ter razão, pois todos têm razão. 



Abraço, Marconi Urquiza. 

   

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Do Face ao Zap: A subjetividade sequestrada

  Creia em si, mas não duvide sempre dos outros.... Frase de Machado de Assis.

"O homem é um animal político" 
significa que ele tem a contraparte mental 
das características físicas de um animal da horda. 
(Wilfred R. Bion - psicanalista)

    Este não é um tema novo. A partir de 1997 estudos científicos foram realizados no Brasil para esmiuçar como as empresas capturavam a subjetividade dos seus empregados. O caso agora é diferente e é muito mais abrangente por envolver a internet e milhões de pessoas. 

     Fomos todos cobaias de um experimento que deu certo dentro do Facebook. 

    Alguns anos atrás eu comecei a estudar o livro "O poder das organizações" ( Max Pagès).  Neste livro há uma série de análises de aplicações  de técnicas, feitas por uma empresa norte americana nos anos 1.980, para dominar a subjetividade dos seus empregados sob uma ampla denominação de Domínio Ideológico. Há até particularidades nelas como a Nova Igreja, onde se criam vínculos a partir de eventos assemelhados aos cultos de uma religião.  Trabalha-se o mito da onisciência, a perfeição em forma de organização,  que tudo supre e é perfeita.

     No final, o resultado é que a subjetividade do funcionário está dominada a tal ponto que toda criticidade do pensamento some. Nenhum contraditório é admitido, pois a subjetividade dominada expulsa o contraditor.

    Agora imagine: eu, você, e nossos amigos envolvidos nas  redes sociais e agora no Whatsapp, formando uma massa gigantesca, dando likes e não likes adoidado, recebendo enxurradas de Whatsapps. Comentando e apoiando e repassando (sem dó) o que acha de valor,  criticando e negando o que não gosta.

     O tempo passa, sem notar só chegam postagens que se adequam às respostas que desejamos  e as crenças que professamos.  Também sem notar, o pensamento começa a ser doutrinado, direcionado para obedecer aos interesses do emissor. 

Nenhum contraditório é admitido, a subjetividade dominada expulsa o contraditor.

    Sem nos dizer, vão nos fazendo mudar a forma de ver o mundo para mundo que querem que vejamos, não nos deixando perceber as contradições das mensagens.

   Sem que se perceba se iniciam as transmissões ao vivo.  Cada um fica ansioso, carente da divindade, pelas suas "sábias palavras a indicar o caminho da redenção". A crença domina a lógica e até a contraprova do método científico passa a ser fake.

   Nenhum contraditório é admitido, o contraditor existente dentro de nós está morto. Toda opiniao se volta contra o que "pensamos", "acreditamos", a confiança é suprema nas mensagens e a "raiva" ganha destaque quando um outro pensamento se opõe "à minha crença".

    A partir desse ponto só importa o sensorial.

   A negação é absoluta.

   Não valem outras proposições, não valem tentativas para pensar em algo diferente. Nem a sensatez própria de cada um vale algo.

     Tudo é rechaçado.

     A subjetividade foi sequestrada.
  
     Abraço, Marconi Urquiza.


Citação inicial:
Bion, W. R. (2007). O místico e o grupo [Attention and interpretation]. In W. R. Bion. Atenção e interpretação (pp. 73-81). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1970).




   

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Se achando deuses, ávidos para destruir

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  Estava iniciando a conversa com um amigo e ele já perguntou se estava adivinhando sobre morte nesta campanha presidencial. Se referia ao assassinato, na Bahia, do músico e capoeirista, Moa do Katendê, após uma discussão sobre o resultado do primeiro turno, onde o morto defendia as teses do Partido dos Trabalhadores e o assassino as teses do candidato do Partido Social Liberal. A sua indagação se deveu a minha crônica: Só faltava um defunto, escrita há quase duas semanas. A minha resposta foi de que eu estava observando uma crescente  tendência de haver mais violência por causa da condução da campanha neste ano. 

  Há muitas pessoas que estão se sentindo empoderadas pela lado ruim, liberados de qualquer temor de punição, sem ligar para a lei, sem ligar para a sociedade, para nada, apenas para sua própria maldade. Destravou qualquer princípio moral que pudesse estar bloqueando a violência nos agressores. Não existe mais o motivo de autodefesa. É punir e punir, punir e punir quem seja minimamente discordante. Foi-se embora por um bom tempo a aceitação da pluralidade, da diversidade. 

   Esta liberação, incitada por um discurso político radical, agressivo e que apaixonou brasileiros demais. Vou repetir, apaixonou, jogou a razão pelo ralo sem um cordão por onde ela pudesse ser puxada.

  Políticos ao longo da história fizeram isto. Armênios foram diziminados na Turquia no início do Século XX, os judeus, nem preciso falar, os curdos iraquianos durante a ditadura de Saddam Hussein. Os Tútsis foram mortos aos montes pelo Hutus em Ruanda, 800 mil pessoas mortas de todos os jeitos, facões, tiro, estrangulamento. 

   Vi uma entrevista de um homem Hutu na qual ele disse uma coisa mais ou menos assim. Antes do genocídio nunca havia feito nada de violento, mas no meio da barbárie saiu matando, perguntado se havia algum motivo, a resposta foi nestes termos: senti um ódio imenso por aquelas pessoas. A outra pergunta: muito foram seus vizinhos. Tiveram problemas com eles? Não, eles eram Tútsis e os Hutus estavam matando, eu sou Hutu. O contexto transformando boas pessoas em más.

   A barbárie no Brasil está empoderada nesta campanha eleitoral, até parece que todos que não estão com ele formam uma etnia como os Tútsis. O líder que instiga tais comportamentos não tem controle sobre seus apoiadores  e ao responder sobre o assassinato de Moa do Katendê quase que eu ouvia um: "Que é que eu tenho haver com isso." Pilates? 

   Eu tenho duas vivências que podem ilustrar o destravamento moral. Em uma delas houve a mudança de religião, em outra ocorreu a mudança de um gestor de uma empresa, grande, cheia de regras, normas de conduta, de ética, compliance, regras externas, legislação a dá na canela.

  Em tese, qualquer religião deve ter preceitos morais que tendem a levar os fieis a terem condutas morais superiores, respeito ao próximo, respeito a sociedade, tolerância à diversidade sexual e racial, apoio a drogados na sua recuperação, união das famílias, respeito as autoridades em geral. Todas pregam o temor doutrinário a Deus como forma de manterem as "bestas" interiores de cada pessoa dominada.

   Minha exemplificação se deveu ao convívio de nove anos com uma funcionária da nossa família. Em 1988 ela mudou de religião. De imediato observamos um fervor religioso que ela não tinha. Contentes vimos a vaidade pessoal mudar, passou a andar arrumada, se enturmou com as colegas de igreja, até a sua conduta mudar conosco. Alguns meses depois da conversão à nova religião começaram os problemas, algumas pequenas perdas, deixou de cumprir a sua responsabilidade diária com zelo, começou provocar perdas de alimentos por negligência, ora cozinhava demais, ora não armazenava no refrigerador, entre outros problemas. Era como se suas falhas fossem a cada evento religioso perdoadas. Ela viveu nesta religião por uns seis anos, até que se enamorou de um rapaz e a igreja condenou esse namoro, ela saiu da religião e recuperou seu comportamento anterior. 

    Exemplo simplista, concordo. 

   No entanto, quando uma influência ganhas ares de "certeza absoluta" o bom senso deixa de ser exercido, só a nova certeza é que conta e se o temor à lei, ao Estado não existem, acabou-se os freios institucionais. Ter aprovação dos seus pares se torna mais importante que respeitar a lei e a ordem, a barbárie tende a virar regra.

   Vamos para o segundo exemplo.

 Eu trabalhei nessa empresa muito tempo. Certo dia recebemos um novo gerente, técnico, de extrema habilidade interpessoal, organizado como nenhum outro com quem trabalhei e, principalmente, um líder absoluto. Vou repetir, um líder absoluto. Não encontrei em mais de 33 anos de trabalho um líder como ele. A liderança tornou fácil o trabalho, o desempenho e os resultados. Como se dizia à época: tudo de bom. 

   Feita esta pequena contextualização, vou trazer outra. A empresa atua em um ramo negócios dos mais regulados em qualquer nação, mesmo nos Estados Unidos. Leis, um "moi", regulamentos estatais, uma montanha, regras internacionais, rigorosas, compliance, vigilância de condutas on-line. Finalmente, regras e mais regras pela higidez dos negócios. Ponto final? Não. 

  Dentre os vários funcionários, havia um, bem exigente no cumprimento das regras. Certo dia eu notei que ele havia deixando de cumprir uma das regras mais fundamentais em um cadastro de um negócio, a fidelidade à informação cadastral da renda. 

  Pois bem, mediante o discurso que a organização era conservadora essa liderança começou a liberar os freios institucionais, os funcionários começaram a agir burlando as regras para o "bem" dos resultados (Colocando seu trabalho em risco para atender ao seu líder). No final da sua passagem os resultados ruins começaram a aparecer, mas agora havia um novo gestor que herdou e, "Toma que o filho é teu."

  Comentamos acima esses dois cosmos, um bem pequeno e o outro enorme. Neste, o esforço de controle da organização é imenso, pois luta com dois aspectos, a sua cultura, que estimula a quebra das regras na busca de se atingir os números de qualquer modo e o seu gigantismo.

  Agora, imagine a situação do Brasil hoje. Com sua imensidão e com essa violência que dá ares de epidemia, estimulada desde muito, ultra estimulada neste ano, com milhões de apoiadores cegos para outras considerações, se achando gladiadores e ávidos para destruir, "querendo agradar seu deus".

   Suspeito que é o início do medo de uma nação.
  
   Abraço, Marconi Urquiza



PS: 
Para uma leitura futura, o contexto desta crônica é a eleição presidencial no Brasil de 2018.











    

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Crônica de Machado de Assis sobre a primeira eleição direta para presidente no Brasil.

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Quando eu cheguei à seção onde tinha de votar, achei três mesários e cinco eleitores. Os eleitores falavam do tempo. Contavam os maiores verões que temos tido; um deles opinava que o verão, em si mesmo não era mau, mas que as febres é que o tornavam detestável. A quanto não ia a amarela? Chegaram mais três eleitores, depois um, depois sete, que, pelo ar, pareciam da mesma casa. Os minutos iam com aquele vagar do costume quando a gente está com pressa. Mais três eleitores. Nove horas e meia. Os conhecidos faziam roda. Uns falavam mal dos gelados, outros tratavam do câmbio. Um velho, ainda maduro, aventou uma boceta¹ de rapé. Foi uma alegria universal. Com que, ainda tomava rapé? No meu tempo, disse o velho sorrindo, era o melhor laço de sociabilidade; agora todos fumam, e o charuto é egoísta.

Nove e três quartos. Trinta e cinco eleitores. Alguns almoçados. Os almoçados interpretavam o regulamento eleitoral diferentemente dos que o não eram. Daí algumas conversações particulares à meia voz, dizendo uns que a chamada devia começar às dez horas em ponto, outros que antes.

— Meus senhores, vai começar a chamada — disse o presidente da mesa.

Eram dez horas menos um minuto. Havia quarenta e sete eleitores. Abriram-se as urnas, que foram mostradas aos eleitores, a fim de que eles vissem que não havia nada dentro. Os cinco mesários já estavam sentados, com os livros, papéis e penas. O presidente fez esta advertência:

— Previno aos senhores eleitores que as cédulas que contiverem nomes riscados e substituídos não serão apuradas; é disposição da lei nova.

Quis protestar contra a lei nova. Pareceu-me (e ainda me parece) opressiva da liberdade eleitoral. Pois eu escolho um nome, para presidente da República, suponhamos; ou senador, ou deputado que seja; em caminho, ao descer do bonde, acho que o nome não é tão bom como o outro, e não posso entrar numa loja, abrir a cédula e trocar o voto? Não posso também ceder a um amigo que me diga que a nossa amizade crescerá se eu preferir o Bernardo ao Bernardino? Que é então liberdade? É o verso do poeta: “e o que escrevo uma vez nunca mais borro”? Pelo amor de Deus! Tal liberdade é puro despotismo², e o mais absurdo dos despotismos, porque faz de mim mesmo o déspota. Obriga-me a não votar, ou a votar às dez e meia em pessoa que, pouco depois das dez, já me parecia insuficiente. Não é que eu tivesse de alterar as minhas cédulas; mas defendo um princípio.

Tinha começado a chamada e prosseguia lentamente para não dar lugar a reclamações. Nove décimos dos eleitores não respondiam por isto ou por aquilo.

— Antônio José Pereira — chamava o mesário.

— Está na Europa — dizia um eleitor, explicando o silêncio.

— Pôncio Pilatos!

— Morreu, senhor; está no Credo.

Um eleitor, brasileiro naturalizado, francês de nascimento, disse-me ao ouvido:

— Por que não se põe aqui a lei francesa? Na França, para cada eleição há diplomas novos com o dia da eleição marcado, de maneira que só serve para esse. Se fizéssemos isto, não chamaríamos o senhor Pereira, que desde 1889 vive em Paris, 28 bis, rua Breda, nem o procurador da Judeia, pela razão de que eles não teriam vindo tirar o diploma, oito dias antes. Compreendeis?

— Compreendi; mas há também abstenções.

— Não haveria abstenção de votos. Os abstencionistas não teriam diplomas.

A chamada ia coxeando. Cada nome, como de regra, era repetido, com certo intervalo, e eu estava três quarteirões adiante. Queixei-me disto ao ex-francês, que me disse:

— Mas, senhor, também este método de chamar pelos nomes é desusado.

— Como é então? Chama-se pelas cores? Pelas alturas? Pelos números das casas?

— Não, senhor; abre-se o escrutínio por certo número de horas; os eleitores vão chegando, votando e saindo.

— Sério?

— Sério.

— Não creio que nos Estados Unidos da América...

Outro eleitor, brasileiro naturalizado, norte-americano de nascimento, acudiu logo que lá era a mesma coisa.

— A mesma coisa, senhor. Não se esqueça que o time is money é invenção nossa. Não seríamos nós que iríamos perder uma infinidade de tempo a ouvir nomes. O eleitor entra, vota, retira-se e vai comprar uma casa, ou vendê-la. Às vezes mais, vai casar-se.

— Sem querer saber do resultado da eleição?

— Perdão, o resultado há de ser-lhe dito em altos brados na rua, ou em grandes cartazes levados por homens pagos para isso. Já tem acontecido a um noivo estar dizendo à noiva que a ama, que a adora, e ser interrompido por um pregoeiro que anuncia a eleição do presidente da República. O noivo, que viveu dois meses em meetings³, bradando contra os republicanos, se é democrata, ou contra os democratas, se é republicano, solta um hurrah cordial, e repete que a ama, que a adora...

— Padre Diogo Antônio Feijó! — prosseguia o mesário.

Pausa.

— Padre Diogo Antônio Feijó!

Pausa.

Eu gemia em silêncio. Consultei o relógio; faltavam sete minutos para as onze, e ainda não começara o meu quarteirão. Quis espairecer, levantei-me, fui até a porta, onde achei dois eleitores, fumando e falando de moças bonitas. Conhecia-os; eram do meu quarteirão. Um era o farmacêutico Xisto, outro um jovem médico, formado há um ano, o doutor Zózimo. “Feliz idade!”, pensei comigo; as moças fazem passar o tempo; e daí talvez já tenham almoçado...

Enfim, começou o meu quarteirão; respirei, mas respirei cedo, porque a lista era quase toda composta de abstencionistas, e os nomes dos ausentes ou mortos gastam mais tempo, pela necessidade de esperar que os donos apareçam. Outra demora: cinco eleitores fizeram a toilette das cédulas à boca da urna, quero dizer que ali mesmo é que as fecharam, passando a cola pela língua, alisando o papel com vagar, com amor, quase que por pirraça. Para quem guarda Deus as paralisias repentinas? As congestões cerebrais? As simples cólicas? Não me pareciam homens que pusessem os princípios acima de uma pontada aguda. Mas Deus é grande! Chegou a minha vez. Votei e corri a almoçar. Relevem a vulgaridade da ação. Tartufo 4 , neste ponto, emendaria o seu próprio autor:

“Ah ! Pour être électeur, je n’en suis pas moins homme [Ah! Um eleitor, mas nem por isso menos homem].”

Fonte: Agência Senado

Glossário:
1) Boceta: Caixa de rapé.
2) Despotismo: Forma de governo que se funda no uso arbitrário do poder.
3) Meetings: reuniões, comícios.
4) Tartufo: Pessoa hipócrita.


O poder revela ou transforma uma pessoa?

  imagem: Orlando/UOL.            Um papo na última segunda-feira entre aposentados do Banco do Brasil que tiveram poder concedido pela empr...