sexta-feira, 4 de junho de 2021

SÓ IMAGENS








     Casca de civilização, da espessura de uma hóstia. Como está a sua?

    Anestesiarmos a nossa consciência ... Acha tudo normal?

    Você ama que todos concordem com você?

    Sedativos morais para escrúpulos éticos. É assim?


    Ótimo final de semana.
      Marconi Urquiza


sexta-feira, 28 de maio de 2021

Viagem de Uber


De repente a sabedoria se preenche toda em uma frase: Cada coisa tem sua hora e cada hora o seu cuidado.

Em muitos momentos da vida como gostaria de ter visto e absorvido essa frase de Rachel de Queiroz. Teria poupado muita agressividade gratuita.

Pois bem, essa história começa nos primórdios de andar de Uber em Recife. Naquele tempo ainda causava briga com os taxistas. Temendo um encontro desagradável, saí da frente da Honda na Av. Mascarenhas de Morais. Atravessei a avenida e fui caminhando até um ponto de ônibus. Pedi o carro e sentei-me para aguarda-lo. Chegou um ônibus e esvaziou a parada. Um pouco depois chegou uma passageira e ficou na beira da calçada.  

Pelo GPS vi o carro tomar um rumo diferente e se demorar. Mais um tempo, ele chegou e o motorista reduziu a velocidade, parou alguns metros depois da parada.  Dei um trote e entrei no Palio marrom.  Com cheiro de novo.

O motorista deu partida e mais à frente disse que o GPS do Uber o havia enviado para trás da concessionária da Honda, motivo do seu atraso. Aquiesci. O papo correu mais algumas palavras, não recordo como mudou de assunto e o motorista, em certo momento falou que tinha 65 anos. Disse-lhe que a sua aparência não revelava a sua idade. Não houve aquele sorriso costumeiro de contentamento. Isto já beira uns sete anos.

Quando o fim da avenida se aproximava perguntei como estava a praça, se estava ganhando dinheiro. Pergunta que fazia sempre que tomava um Uber. Não lembro bem como o assunto de negócio virou uma conversa pessoal. Ao escrever veio claro em minha mente ele me olhando, aquele olhar, que só depois de muito tempo é que entendemos ser o prenúncio que o interlocutor quer dizer algo diferente do de uma conversa meramente casual. 

Queimei as minhas lembranças em busca do momento em que a conversa, de pessoal virou séria, de repente ouvi:
- Eu tenho câncer - olhei para o homem.  Não parecia doente. Depois de pensar um pouco, disse:
- É uma doença medonha, afeta toda a família 
Ele emendou:
- Meus filhos querem que eu fique em casa, mas eu disse que ficar sem trabalhar morrerei mais cedo. Um pouco de dinheiro ajuda, mas tenho que me ocupar. 

Balancei a cabeça concordando com ele, depois silenciei. A minha mente em turbilhão pouco podia dizer, não sabia como consolar e se era possível. Sequer tentei mudar de assunto, deixei que ele tivesse a iniciativa de continuar falando ou não.

Um tempo depois chegamos ao meu destino.  Ao sair  do carro me sentia pesaroso, penso que ele, um pouco aliviado.

Sabe por que tudo isso veio agora, sabe? De repente, para mim, um amigo anunciou que faria uma cirurgia no dia seguinte. Surpreso quis saber por que: câncer.

Ao ler a resposta desse amigo me ocorreu o mesmo silêncio introspectivo do dia do encontro no Uber. Igual silêncio que  me  ocorreu várias vezes nos anos em que atendia os clientes bem doentes no Banco do Brasil, na agência Agamenon Magalhães, situada próxima a vários hospitais e clínicas de Recife. 

Em vários momentos, alguns clientes mostravam nos braços e na face a saúde em declínio. Até me pareciam terminais. 

Tentava compreender e não ser agoniado, ouvir as queixas sem reclamar e nem condenar.  Sem demonstrar desconforto e nem pressa. Ajudava no que fosse possível.  Aqueles anos foram os do meu sacerdócio e de profundo significado para a vida. Aprendi a ouvi-las respeitosamente, olhando nos seus corações.

Para finalizar quero lembrar de um amigo que se encantou.  Uma pessoa de voz suave,  rosto leve, sorriso doce e índole acolhedora. Assim era Adilson Tilim, lá de Surubim. 


Abração. Ótimo final de semana.

Marconi Urquiza




sexta-feira, 21 de maio de 2021

Mulheres adultas têm pelos

 


Não é um título original, peguei emprestado de Marcela Guimarães. 

Há algum tempo, antes deste maio, havia lido alguma coisa a respeito do tema. Não sei dizer o que li com clareza, só recordo o contexto e o assunto.

O texto de Marcela é que me deu o título da crônica. O artigo está na revista Continente, de setembro do ano passado. A matéria fala de um projeto de uma zine, um tipo de  revista eletrônica, criada pela autora, que é fotógrafa.

Por causa da pandemia, chegaram ao mesmo tempo as revistas represadas durante vários meses. Essa, abri a cerca de um mês, sabe, li com aquela agonia dos tempos atuais, passando por cima das frases, olhando basicamente as imagens e suas legendas. Uma típica leitura da internet, três linhas, já se pula para outra postagem.

Mesmo assim, o assunto não foi para a porta de saída, sentou-se na sala como um visitante insistente. Muitos dias após a primeira e apressada leitura essa visita se levantou e disse:

- Olha, veja de novo. Está muito interessante - peguei, folheie e pus a revista no meio das outras. O visitante permaneceu invisível até dois dias atrás, foi quando reabri a revista e lá veio ele de novo:

- Pode ler, vai gostar - então li, lendo.

O texto perpassa aspectos culturais, sociais, femininos, masculinos, argumentos sobre saúde e higiene. Sem deixar de citar que é também um negócio.

Ao ter atenção para a matéria fiz uma viagem na minha própria estranheza de menino adolescente, quando em certo momento dos meus 13 anos vi os primeiros pelos pubianos nascendo, da vergonha de ser visto minha mãe ao tomar banho com meus irmãos e ela me olhar nesse novo corpo.

Andando na rua, na adolescência dos anos 1970, achava estranho que muitas meninas tivessem vastos pelos nos braços e nas pernas. Algum tempo depois observava nessas pernas as marcas da raspagem à Gilette[1]. Até percebia em várias outras, que os pelos dos braços estavam descoloridos com o uso de água oxigenada volume 20.

Lembro de um arquétipo da minha adolescência entre os rapazes da minha terra, que era o uso do bigode. Quanto mais vasto, mais apreciado. Havia também o uso da barba. Eu não tinha nenhuma dois em abundância. Na barba desciam uns pelos espaçados pelos lados do rosto, que a muito custo se pareciam com costeletas. Para bigode, coitado, era uma risca de giz de preto. Uma coisa mínima. Ainda assim, insisti em usar.

Voltando ao texto de Marcela, me situo na parte em que a autora observa como as mães levam as filhas ao ginecologista, como as orienta a se depilarem, em alguns casos, até antes dos 15 anos.

Uma questão cultural se formou. Mais à frente, a matéria remete a outros aspectos: influência de namorados, maridos, amantes, da sociologia do trabalho, entre outros. Impondo, mesmo para quem não queria tanto, um padrão sem pelos para as mulheres a ponto de provocar dificuldade de se realizar o exame toxicológico para as motoristas profissionais, pela ausência de pelos a serem coletados.

Marcela incorporou várias fotografias na matéria, a maioria de axilas. Também nessa altura da leitura recordei de um certo estranhamento de minha parte. Vejam. Os homens não usam camisetas com frequência, as mulheres usam muitas blusas sem mangas, de alças. Ao se ver em público pelos nas axilas, isto entrou naquele estado mental de olhar diferente por causa da cultura da depilação feminina, também assimilada pelos homens. É como uma afronta aos cânones visuais do nosso tempo.

Muitas vezes apenas expressar um ponto de vista pode nos tornar vítimas de impropérios, de perseguições, do ódio insano que se vê a todo instante. Mesmo em algo tão pessoal, como optar por ter ou não pelos expostos, pode parecer “uma grave infração penal”. O que tende a tornar mais conveniente ou seguro se esconder ou seguir a ordem das massas. O danado é que às vezes isso se torna inevitável.

Muito se fala das tribos, do modo exponencial que cresceram no ambiente da internet. Tornou-se mais fácil se juntar as pessoas com as mesmas predileções e radicalizar contra quem pensa e age diferente.

Como tantas outras crenças limitantes que recebemos pela vida, ser o que se deseja, ou usar o que se quer, gera impacto na nossa vontade. Fazer cara de paisagem não é uma tarefa fácil, mas pode ser a alternativa de se ser o que se deseja.



[1] Gilette – Marca da lâmina de barbear.


Ótimo final de semana

Marconi Urquiza

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Perfil no Instagram (mais visual)

https://www.instagram.com/mulheresadultastempelos/

Link da revista eletrônica(visual e com depoimentos):

Revista: Mulheres adultas têm pelos

Link da matéria na revista Continente (artigo completo): 

Mulheres adultas têm pelo

sexta-feira, 14 de maio de 2021

MIND

 

Cena do filme Ensaio sobre a cegueira

        Ontem vi um gesto que cutucou a mente. Seria voluntário? Simples ato de uma vaidade latente? Seria apenas um gesto corriqueiro? Ou então, um aceno de um flerte inconsciente? Ou aquele gestual de tirar os cabelos de trás das orelhas foi consciente de quem desejava se mostrar mais bonita.

       Tal sutileza me fez lembrar de dois escritores brasileiros e as suas artes de mostrar tais nuances em seus contos.

         O primeiro deles é o conto Missa do Galo. Nele, Machado de Assis apresenta o sutil flerte de uma mulher casada para o sobrinho do seu marido, que estava hospedado em sua casa. Pequenos sinais, palavras que soam como avisos, mas que eram uma abertura para o rapaz, desde que ele se ligasse nela.

      O outro conto, também de Machado, do qual não recordo o título, vem da inteligência do escritor e do seu personagem central em atrair o amante de sua esposa para um encontro furtivo em nome dela, onde a morte o espera.

       O terceiro conto, tal qual o segundo, é o ódio que move o personagem, masculino, a atrair o feminino em Venha ver o pôr do sol. Aqui Lígia Fagundes Telles usa de uma maestria que ocorre em muita gente: a dissimulação. O rapaz dissimula até o final a sua real intenção.

      Flerte, ódio, traição, dissimulação, frustração, ingenuidade. Vida e morte.

     Tais contos são da era em que o comportamento humano era influenciado pela comunidade, pelos jornais, pelo rádio, pela tevê, pelas fofocas e pelos sentimentos naturais, educacionais e culturais de um povo. De construção mais lenta, por meio da população de uma região, bairro, grupos de convívio.

       Agora vamos sair da era analógica para a digital.

      A psicologia, a psicologia social, sociologia, psicanálise, psiquiatria, as religiões, enfim, todas as ciências, entidades ou estudiosos que se aprofundaram nos comportamentos humanos. Todo o saber a esse respeito estão interligados para influenciar as pessoas nas redes sociais.

      Recentemente li um artigo no Estadão intitulado: O pertencimento é mais importante do que a verdade: a era da desinformação. Pode-se traduzir desinformação como Fake News e a causa desse padrão comportamental se reflete na demonstração de aprovação ao que se recebe, onde “a verdade de um post ou a autenticidade não foram identificadas como motivo para retuitar”.

       Esse pertencimento é o básico pelo qual as pessoas se juntam em grupos. Para se sentirem participantes, de dentro de algo que lhe parece valioso: ser aceito. Tal contexto preenche uma parte de suas vidas. Tal percepção é muito importante para uma interpretação adequada e até possibilitar uma conversa sem agressões.

       Agora volto a matutar sobre aquele gesto de soltar o cabelo de trás das orelhas e embelezar o rosto, dele é que veio as ideias abaixo.

       Imagine uma pessoa com 61 anos, lá pelo ano de 2082. Que teve acesso e viveu todo o tempo com um celular na mão, participando de grupos, dando likes e cliques negativos e positivos. Lendo e absorvendo aviões diários de notícias, mensagens, imagens, opiniões. Ela sente pertencer ao mundo, pois o mundo é o digital.

        As relações sociais foram todas intermediadas pelas redes digitais, pela internet. Ela conhece pessoas distantes, sem nunca ter convivido ou conservado longamente. As ama ou odeia, muitas vezes são indiferentes. O que se tornou raro. Os seus sentimentos são intermediados pelos algoritmos, incessantemente.

        Como seremos em 2082?

       Como estaremos? Ricos em nossa cultura e diversos ou apenas na medida da cultura permitida pelos donos dos algoritmos,?

 

          Abração e ótimo final de semana.

          Marconi Urquiza


Tradução: Mind = Mente.


Link da imagem de abertura:

Link da matéria citada:

        


sexta-feira, 7 de maio de 2021

Conversa com Ivan


Fotografia copiada do Facebook



               A saudade quanto vem
     abraça.
     Às vezes maltrata,
     outras, 
     afaga.


Imagine. 

Imagine que você vê uma fotografia antiga de uma pessoa que conviveu na sua infância. Aí a fotografia sai de dois grupos do Whatsapp e se esbarra com ela no Facebook. Um fragmento de um sentimento que ficou rondando a sua lembrança há muito tempo aparece de novo. Uma sensação crescendo e então aquilo de muito anos atrás encheu o coração, voltou para ser compartilhado.

Inicialmente lembrei-me de um encontro, uma conversa e aos poucos uma história foi se formando

Ocorreu em dois momentos distintos. Na infância, em Bom Conselho, havia três farmácias. A de papai, a de Ivan Crespo e a de Nelo. Farmácia Confiança, Drogaria Crespo e Farmácia Mons. Alfredo Dâmaso - penso que era esse o nome. Tenho dúvida.

Nessa época o movimento de carros na Praça Pedro II era pequeno. A farmácia de papai ficava na Praça João Pessoa, uma extensão da grande praça Pedro II.

Várias vezes papai me mandou ir até Ivan comprar algum medicamento que faltava para despachar uma receita médica. Nesse tempo eu ainda usava calça curta. O que acho interessante, diferente dos dias atuais, é que não se andava tanto pela calçada, era mais pelo meio da rua.

A caminhada desde a farmácia de papai até a de Ivan era de cerca de 150 metros, feito na diagonal, subindo a rua. Acho que as primeiras vezes que cumpri essa missão eu devia ter uns 10 anos. Hoje tenho 61anos, lá se vão mais de 50 anos.

Assim que eu saia do balcão da nossa farmácia, antes de pisar na calçada, o dinheiro já estava todo dobrado e preso na mão esquerda. Tão fechada que ficava dolorida.

De punho fechado caminhava o mais rápido que podia, algumas vezes chegava ofegante, mas não era por cansaço, era do medo e pela ansiedade de cumprir aquele trabalho.

Sabe, uma coisa me veio agora. Ao escrever essas lembranças surgiu cristalina a recordação de como Ivan me tratava. Ele nunca me chamou pelo nome. Me recebia sempre com um sorriso, com simpatia e achava engraçado o meu cuidado com o dinheiro todo amassado que passava para ele. Nunca falou Marconi, só Marne Novo.

       Depois dessa fase pouco o vi. Muitos anos depois eu fui visita-lo, em meados dos anos 1990, ele estava montando uma fábrica de doces. Conversamos um pouco. Contou parte dos seus planos. 

Após esse encontro, o tempo correu, nos anos seguintes o vi umas poucas vezes e de longe. Até que certo dia mudei a minha atitude. Nessa época pesquisava para um livro que pretendia escrever, um romance com a história sobre a morte de papai.

Havia conversado com alguns amigos de meu pai e não prossegui com esse intento, pois havia muita emoção represada ao tratar do assunto. Aqueles homens pareciam querer se desmanchar em lágrimas ao iniciar a conversa sobre a sua morte. Parei, também não suportei.

Acreditando que falar com os adversários políticos da época poderia ser o caminho para a obtenção de luz para algumas dúvidas, comecei a pensar em algumas pessoas. Depois de muitas dúvidas, indecisões e adiamentos repetidos, criei coragem e fui falar com Ivan. Ele devia estar com 70 anos e eu atravessava os 48.

Cheguei um dia à tarde, quase final de expediente. Ele estava sentado na mesa onde ficava o caixa, no meio da farmácia. Me aproximei e me cumprimentou como sempre, com o Marne Novo. Pedi licença e sentei-me na cadeira que me ofereceu. Me fez algumas perguntas, quis saber quantos filhos tinha, idade, essas coisas. Falei que tinha vivido distante, mas agora trabalhava em Pernambuco. Emendei e falei das minhas lembranças de criança quando ia lá comprar os remédios, ele riu ao dizer que eu tinha um medo danado de perder o dinheiro. Também ri.

A cada minuto da nossa conversa sentia que ele ia se emocionando, acho que se surpreendeu com minha visita.  Depois de alguns minutos disse-lhe o que mais desejava. Comentei do meu projeto, da minha dificuldade em obter comentários e perguntei se poderia me dizer alguma coisa daquela confusão enorme da eleição de 1982.

Ele me expôs detalhes que eu nunca havia tomado conhecimento. Da provocação inicial na Praça Pedro II em outubro daquele ano, da armadilha não percebida por papai naqueles episódios, desde o mês de agosto. Foram informações importantes para compreender a escalada da violência que tomou conta daquela disputa.

Nessa altura eu senti que Ivan estava muito emocionado e eu tentava me comportar como um repórter investigativo, mas não consegui, inventei uma desculpa que teria de pegar os filhos na casa do sogro e saí o mais rápido que pude, segurando as lágrimas.

Peguei o carro e fui na direção contrária ao destino que usei como desculpa. Após um passeio curto voltei pela Praça Pedro II e passei pela frente do seu comércio. Agora Ivan estava sentado em um banco de praça, no canteiro central do largo da praça. Ele estava com o olhar distante, não sei se sentia só, não parecia triste, como das outras vezes que o havia visto naquele mesmo local.

Bem, eis um pequeno fragmento de duas vidas. 


Ótimo final de semana.

Marconi Urquiza

 

Fonte da imagem:http://tiagopadilhaoblog.blogspot.com/

sexta-feira, 30 de abril de 2021

TANGENDO BOI



                                       A Fábio Ceará. 
  
          Mexendo no estoque de papéis velhos, vez por outra acho alguma pérola. Desta vez fui atrás de um caderno para anotar alguma coisa de umas aulas de vídeo e achei uma pequena crônica. Li com os olhos críticos e sevemos dos dias hoje. Nessa primeira releitura em anos, nada enxerguei naquelas poucas palavras algo que valesse a pena. 
       Quando penso que quase não se consegue rir, pois o ambiente é de dor, de expiação e de pessimismo. Olhar através da janela e ter uma visão, mínima que seja, de um horizonte menos cinzento, é quase um milagre ou um imenso esforço de otimismo.
       Há pessoas  que são vampiros, sugam a nossa seiva, pois só assim vivem, se nutrem da nossa angústia. Só que no momento atual, isto vem em escala "planetária". É um imenso sugador de energia boa para alimentar uma central ou um buraco negro nacional que come a energia das nossas almas.
       É assim, mesmo que neguemos, ou mesmo que não consigamos sentir ou ver.
       Mas aquele velho papel, da crônica, me levou a alguns anos em que a alegria, o bom humor, o compadrio e o companheirismo, enfim, a amizade de todos os lados que era capaz absorver até a maior chatice do universo. Tudo isso, por incrível que o senso comum nas empresas creia ao contrário, ocorria junto com muito lucro e notas altíssimas de desempenho.
       Pois bem, a crônica original:

    TANGENDO UM BOI
   
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             Tem uma turma que não perde a piada e nem a oportunidade de fazer uma. Recentemente me narraram uma grande metáfora.
            Após a escolha do novo líder da ECOA*, as festividades de uma agência cresceram de modo exponencial e se tornaram mais gostosas e repletas de comida. Muita comida, muita mesmo.
            Não há esse negócio de regrar comida, tudo que se refere a comida nas festas têm o signo da fartura.
            Aí um colega mais espirituoso saiu-se com essa:

           - Sei não! Jota fez acordo com o Batalhão de Trânsito.
           - Mas como? Para quê? - Indagou espantado outro colega. 

           - Para levar a feira mensal em casa.
           - O quê? Ôoooopa, endoidou!
           - Só pode! Só de carne é uma enormidade, pois o boi ele leva tangendo pela rua.


Ótimo final de semana

Abraços,
Marconi.
                                 16/11/2011 - 18:36
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*ECOA - não lembro exatamente dos termos da sigla.
(Tangendo = conduzindo)
 

sexta-feira, 23 de abril de 2021

CHOPE CARAMELADO


Um xícara de café expresso, um chope escuro. Da incompatibilidade nasceu essa história.

Meio dado a falastrão, Querêncio chegou atrasado no futebol e ficou no banco. Viu os amigos correrem durante meia-hora. Entrou a segunda pelada e ele continuou esperando. Perdera a vez, havia agenda para a primeira pelada, mas seu atraso lhe jogou para o fim da fila.

Quando começou a jogar viu alguns amigos mais chegados indo embora. “Hoje não ter ninguém para tomar uma cerveja”. Os que estavam jogando com ele eram meros companheiros de peladas. O máximo de intimidade era o protocolar: “Como vai?”

Desejava contar a novidade que descobrira no Shopping Boa Vista. “Fica para depois, aquele quiosque tem vida longa com o seu chope saboroso”.

Após o final da pelada, ele tomou banho, arrumou as suas coisas para ir embora, mas caiu na tentação:

− Júnior, traz uma Origina gelada.

− Quantos copos?
− Só para mim, os amigos já foram – Querêncio respondeu com uma ponta de frustração na voz.
− Se o senhor vier na sexta, seu Valter costuma ficar para tomar duas cervejas.
− Beleza, vou chegar para a primeira pelada.
− Que aquele tira-gosto?
− Depois, mas hoje vou de espetinho. Tem?
− Frango, frango e queijo, carne e queijo.
− Tá bom. Quando eu pedir traga o de frango e queijo.

Deu um sorriso chocho, pois havia se lembrado do dono de uma galeteria de frango defumado, pois certa vez ao pedir um frango inteiro, foi corrigido por esse homem: “É galeto. Mas tem frango aqui, ali e lá dentro”. Pensou em dizer que ele era preconceituoso, mas deixou para lá.

Tomou a primeira cerveja, pediu a segunda. Tomou mas um copo e no final dele veio: “Puta merda, que chope bom aquele. Sábado vou lá tomar duas canecas”.

Chegou a sexta-feira e se ele se encontrou com Valter.

− Vamos tomar uma hoje?

− Vamos na quarta, amanhã vou viajar.
− Tá bem.

Péricles foi passando:

− Toma uma hoje?
− Tomo, até sete e meia.

Eles sabiam que a limitação de horário se devia a Lei Seca. Seis e meia da noite sentaram para aquele hora de bate-papo regado à cerveja. Lá pelas tantas, Querêncio disse:

− Vamos amanhã lá no Shopping Boa Vista tomar um chope?

− Quem sabe. Me liga amanhã cedo. De repente eu convenço a mulher de ir no supermercado sozinha.
− Tá bem, vou ligar.
− Pode ligar.

Cada um bebeu seu copo de cerveja. Mas agora era de Heineken. Na garganta de Querêncio desceu amargando, mas desceu gostosa.

− Essa cerveja bem gelada, como essa, é muito boa – comentou Péricles.

− É mesmo. Demorei a me acostumar com ela. Mas agora estou gostando. Só não aguento beber quando esquenta. O amargor aumenta muito.
− Só presta bem gelada – disse Péricles.
− Que comer alguma coisa? – Falou Querêncio.
− Não, daqui a pouco vou jantar.
− Beleza.

Querêncio sentiu que o assunto estava acabando. “Rapaz, vou cutucar ele, se não, nem chega na saideira”.

− Péricles, sabe esse chope do Shopping da Boa Vista?

− Sei.
− Olha, eu nunca havia tomado um como aquele. É bom demais!
− Eu gosto de chope, mas até agora para mim são dos todos iguais. Só muda a marca. Até um da Heineken que tomei em Santiago tinha gosto dos daqui, nem parecia com o gosto da cerveja.
− Não, amigo, esse é muito diferente, pois andei por outros lugares que vendem chope e o gosto é igual. Acho que a Brahma está experimentando um novo sabor.
− Será? Pode ser. – Péricles se lembrou das vezes que geriu programas pilotos de alguma melhoria no seu trabalho.

Terminaram aquele cerveja. Querêncio sentiu que Péricles estava para sair, então disse:

− A saideira?

− Só essa.

Beberam rápido. No estacionamento Péricles chamou Querêncio.

− Vamos, eu dou carona. O caminho para minha casa é o mesmo da sua.

Cinco minutos depois:

− Amanhã te ligo – disse Querêncio.

− Beleza.
− Até.
− Até.

No dia seguinte Querêncio ligou, mas Péricles não pode ir. Dez horas Querêncio chamou a esposa:

− Mirna, vamos no Shopping Boa Vista?

− Eu quero tomar um chope bom que tem lá. Chope escuro.

Meia-hora depois saíram, faltando dez para as onze horas da manhã, Querêncio chegava nos bancos altos do quiosque de chope.

− Quero um chope escuro.

Em minutos a caneca estava à sua frente. Com os lábio gulosos tomou um gole grande. “Tá diferente”. Terminou aquela caneca, pediu agora uma tulipa. O gosto não mudou. A decepção começava a chegar.

− Pode me trazer uma tulipa de chope claro?

− O senhor que algum petisco?
− Não, agora não.

A atendente colocou na sua frente o chope claro. Bebeu devagar tentando encontrar as “notas do sabor especial”. Tomou apenas a metade da tulipa e não se aguentou:

− Moça, trabalha aqui há muito tempo?

− Trabalho, um ano.
− Sabe o que é? Eu vim aui há uns dois meses e tomei um chope tão bom, mas tão bom que estou estranhando esse sabor.

− Não mudou nada. Olhe aqui – e mostrou os barris de chope.

− Tá. Acho que me enganei – evitou prolongar àquela conversa, pois não desejava passar por tantã.
− Moça, traga um pratinho de pão de queijo.

Aquecidos no micro-ondas, em um minuto os seis pães estavam prontos para serem degustados.

− Traga mais um chope claro e também a conta – pediu Querêncio.

O sabor marcante dos pães de queijo engoliu por um momento o sabor do chope e da sua lembrança.

Saiu do quiosque disfarçando a sua decepção. “Ainda vem que Péricles não veio. Ainda bem”. Um pouco depois se encontrou com a esposa.

− E aí?  Saciou a vontade?

− Não. Tô só de barriga cheia.
− Só?
− Só. O que vim buscar não tinha e parece que nunca teve.
− Vá!
− É, pela conversa da moça que atende tá tudo igual desde que ela começou a trabalhar lá.
− Ôh, Querêncio! O que você queria mesmo?
− O que eu queria? – Ele repetiu a pergunta um tanto alheio.
− Acorda, homem! O que vocês estava a fim?

Com um ar de sonhador, muito sonhador, respondeu:

− Do chope caramelado.

− Chope caramelado... E tem esse tipo?
− Um dia teve e eu bebi. Não tem mais. Vamos, dirija, estou cheio de chope.

Mirna saiu do estacionamento, pegou uma ruazinha, a Corredor do Bispo e foi dirigindo devagar por várias ruas estreitas cheias de carro dos dois lados. De relance olhou para o marido, viu que ele tentava achar a resposta do sonho do chope caramelado.

Mirna sinalizou e entrou à esquerda na Visconde de Suassuna. O trânsito no sábado estava tranquilo. Dirigia sem pressa. No sinal da Avenida João de Barros ela ouviu um murmúrio.

− Disse alguma coisa, Querêncio?

− Pensei.
− Saiu de sua boca umas coisas que não entendi.
− Deve ter saído.
− Certo. O que você pensou?
− Pensei... Pensei...
− Diz logo, homem!
− Vou dizer.

O sinal abriu e Mirna se concentrou em dirigir, só teria sinal um quilômetros depois e logo atravessariam a avenida mais movimentada do Recife.

Chegaram no Parque Amorim. O sinal Para cruzar a avenida estava fechado.

Mirna estava impaciente:

− Vai dizer ou vai ficar nesse suspense.

Um sorriso meio debochado apareceu no rosto de Querêncio antes dele falar.

− Olhe, a uns dois meses nós fomos no Shopping Boa Vista. Lembra que lanchamos e eu tomei uma enorme xícara de um café caro na São Braz? Lembra?

− Lembro.
− Você foi fazer umas compras e eu resolvi ver uma livraria. Depois de alisar os livros em sai e vi o quiosque de chope...
− E tomou um bocado de chope.
− Só tomei três. Vai querer arengar agora, é?
− Vai conta, estou curiosa.
− Tá. Cheguei lá, pedi um chope escuro e veio um sabor gostoso. Saboroso. Como diz esse povo que gosta de botar sabor café, um negócio de notas disso, notas daquilo. Pois bem, o meu chope tinha gosto de caramelo.
− Pronto, ouvi, mas você não me disse como esse chope estava com gosto de caramelo.
− Não tenho outra explicação. A minha boca misturou os gostos e transformou aquele chope em chope caramelado.
− Eita, que invenção! – Disse Mirna.

Querêncio apenas sorriu, desta vez feliz, pois havia sentido o sabor inigualável do chope caramelado. A sua iguaria única. Só quinze anos depois é que algum cervejeiro com gosto pelo café andava tentando inventar uma cerveja caramelada. Bem que poderia chamar Querêncio para ser degustador.

− Mirna, pode acreditar, foi uma invenção da boa.

O poder revela ou transforma uma pessoa?

  imagem: Orlando/UOL.            Um papo na última segunda-feira entre aposentados do Banco do Brasil que tiveram poder concedido pela empr...