Um conto, quase uma crônica, uma mistura de ambos.
MARCONI
URQUIZA
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O
DOM DO MISTÉRIO
Uma
homenagem a Luiz Clério Duarte.
Estava na redação do
jornal local, Notícia Regional. Fazia uma visita de cortesia. Sem aviso prévio
do diretor do jornal, ele havia começado a publicar seus escritos. Crônicas,
contos, comentários. Um dia, ao acaso, leu o jornal e ficou sensibilizado, disse
que viajaria só para agradecer a gentileza. E levou um bom tempo.
O tempo passou, e Jasme
José viajou, realizando uma visita a muitas pessoas. No segundo dia em que
esteve na cidade, foi à redação do Notícia Regional. Precisava agradecer a
gentileza, queria conversar, se sentia solitário. Estava contente por poder
ouvir outras pessoas, diferentes do seu círculo de amizades.
Ao chegar ao escritório,
viu apenas o diretor do jornal, Arno Ivanovich. Desde a primeira vez que fora
apresentado ao repórter, ele ficara curioso para saber a razão de ter sido
batizado com um nome estrangeiro, tão fora da tradição da região. Após cinco
minutos de conversa, perguntou:
— Desculpa, você tem
parentesco com russo?
— Não, é que meu pai, em
certo momento, foi um simpatizante do comunismo e andou inventando isso. Você
não sabe a maior: um dia, ele viu a marca Arno...
— Ventilador? Indagou Jasme.
— É, também. Meu nome foi
dado assim, e Ivanovich foi derivado do próprio nome de papai, Ivan.
— Ah! Bom.
— Seu nome também é
incomum.
— É verdade. Papai quis
homenagear seu avô, que era apelidado de Jasme.
A conversa correu, Jasme
viu um livro sobre a mesa, pegou-o e folheou. Sem muito interesse, devolveu-o
ao local de origem. Arno acompanhou o movimento, então comentou:
— Este livro é mais fraco
que os outros que ele escreveu.
— Como?
— É muito superficial, afirmou Arno.
— Hum! Folheei o artigo sobre um político, mas não me
aprofundei. O pouco que li deu para perceber que tem um tom meio especulativo, comentou Jasme.
— Tem muitas falhas:
falhas históricas, não cita as fontes e tem, até erros elementares na redação.
— Notei esse aspecto
gramatical em um livro anterior, observou Jasme.
— Mas, para mim, o pior é
ele se apropriar dos relatos, como se fossem dele. Com isso, Arno encerrou o
assunto, quase, não fosse o comentário de Jasme:
— Ele tem até um parente que é catedrático na faculdade.
— É, ele poderia pedir
uma indicação de um revisor, mas lhe falta humildade.
— Também acho.
O assunto esfriou, mas,
em certo instante, o jornalista fez uma pergunta:
— Você sabia que Ténisson
é doutor em Machado de Assis?
— Ele fez tese sobre
Machado de Assis?
— Foi.
— Não sabia. Eu sabia que
ele era um professor importante na área de literatura brasileira. Sei até que, com certa
constância, aparece nos jornais e até é convidado para editar e organizar
coletâneas de uma editora importante.
Arno silenciou por algum tempo, então falou, pensando no
professor Ténisson:
— Machado de Assis...
— Leu algum livro dele? Indagou
Jasme.
— Memórias Póstumas de
Brás Cubas. Mas não pergunte nada. Faz muito tempo que li. E você leu?
— Li vários contos.
Estava aqui tentando; não lembro ter lido nada na escola, nem de algum livro
dele fazer parte daqueles obrigatórios nos vestibulares que fiz. Mas eu demorei
a ler Machado de Assis e ocorreu o mesmo com Clarice Lispector. Buscava citações
deles e, mais nada, respondeu Jasme.
— A internet está
inundada de escritos sobre os dois. Digitou o nome e aparece uma lista de
postagens quase interminável.
— Acredito que isso tenha
atrasado minha leitura de um livro completo. Só fui ler dois neste ano, dois
livros de contos de Clarice. Já os contos de Machado de Assis li há mais tempo,
informou Jasme.
Chegou um rapaz,
conversou rápido com Arno; depois chegou outro e sentou no sofá. Após o bom
dia, se calou e ficou zapeando no celular. Depois chegou mais um homem, pegou
cinquenta exemplares do jornal para distribuir em uma comunidade rural.
Jasme observava essa
dinâmica; quando ela acalmou, ele perguntou por Aldo Mário:
— Faz tempo que não vem
por aqui, respondeu Arno.
— Gostaria de conversar
com ele sobre uma série de eventos políticos aqui da cidade.
— Ele não vem mais, se
irritou porque discordei dele. Mas lá pelas
três horas da tarde, você acha Aldo no seu escritório. Vá lá que ele vai contar
o que sabe. É um historiador natural.
— Obrigado. Você sabe
dizer se Ténisson está por aqui?
— Acho que não; ele andou
visitando a mãe há uns quinze dias. Vem
pouco. O melhor procurar por ele na Capital,
na Universidade, informou Arno.
— É mesmo! É que,
agorinha, eu estava pensando que todo mundo, sem exagero, fala de Bentinho e de
Capitu. Principalmente dela. Traiu, não traiu e com isso vai alimentando a
polêmica, sem conclusão, sobre o comportamento de Capitu. É um mistério sem
fim.
— É verdade. Machado traz
isso em Dom Casmurro, observou Arno.
— Sabe o que eu estava
pensando? Jasme deu uma suspirada. Não se sentia seguro quanto ao comentário
que faria, embora tivesse a sensação de que a sua percepção fosse mais uma
faceta de Machado de Assis.
Arno nada disse; aguardou
o comentário ser dito:
— Sabe, Arno, nos contos
que li, eu notei um padrão: o primeiro aspecto é que ele não entrega nada antes
do final. Se quisermos saber o desfecho tem que terminar a leitura. Do segundo aspecto... nada disse.
— Não entendi o segundo
aspecto, quis saber Arno, uma vez que Jasme não
conclui o seu raciocínio.
— Não estou bem certo.
Você já leu algum conto dele?
— Poucos.
— Talvez, o professor Ténisson não concorde com o segundo aspecto. É que, se ele escrevesse
nos dias de hoje, seria o melhor escritor de mistério. Aí começou a explicar o
seu raciocínio, citando vários contos em que o escritor prende a atenção do
leitor, ao mesmo tempo que o distrai com narrativas paralelas.
Quando Jasme terminou os
seus comentários, Arno disse:
— Nunca pensei nisso e
também não li ninguém teorizando sobre esse aspecto.
— Na verdade, não
pesquisei a respeito. É que li tantos livros de literatura policial ou de algum
gênero de escrita semelhante que cheguei à conclusão de
que o grande Machado de Assis brincava de iludir o leitor e fazê-lo ler até o
fim.
Arno se calou e depois
disse:
— Quem sabe eu peça a
Ténisson para escrever sobre esse dom do mistério em Machado de Assis.
Na calçada surgiram dois
amigos de Arno, e ele convidou Jasme para se
juntar a eles, dando por
encerrada a conversa.
— Jasme, a turma das onze
horas está chegando. Fique aí para conversar com eles e rever alguns amigos e, quem
sabe, recordar algumas histórias.
Jasme mudou da cadeira
para o sofá, olhando cada rosto que chegava, recordando dos tempos em que aqueles
homens, quando mais jovens, apareciam no comércio do seu pai para uma prosa
diária no final da tarde. Aí viajou para Machado de Assis e se indagou: quantos mistérios tem por aqui? E o mistério do
Bulandim? E do carro de bois que nunca chegava?
Em algum dia de 2021, no
meio da sufocante pandemia de Covid-19.
Abração, Marconi Urquiza