Com insônia que perturba
A mente e o coração.
Sei que após a tempestade
Poema de Ademar Rafael Ferreira
2020, Um Ano Impossível?
Nesta semana foi a maior comemoração do ano, 100 anos de Clarice Lispector. Tanta coisa foi dita, tantas lives e citações nesta semana foram feitas. Imagens e mais imagens dos seus livros e dela mesma. Pelo menos para mim esse excesso de menções não deu-me o efeito de enjoo.
Estava a procura de um assunto quando li no Instagram a frase de Clarice. Vou repeti-la:
O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós.
Foi como estar dentro de um ônibus quando o motorista dá uma freada brusca e nos pega desprevenidos, nos jogando para trás e a para frente sem tenhamos como controlar os nossos movimentos. É quase uma topada que nos joga na calçada.
Quem já não fez coisas que classificou de impossível?
A frase de Clarice Lispector foi um link sem filtros para uma realidade que não recordava mais e que ao reler, depois de dezessete anos, me senti perplexo. Uma perplexidade pelo uso da palavra impossível, ainda mais por sentir o que o havia escrito teve dimensão histórica de uma superação de dificuldade que era um contraponto a todo que é organizado, o caos. É que falei aos colegas do Banco do Brasil em Surubim, naquele ano da graça de 2003, naquele mês de agosto, que dada as circunstâncias de metas muito elevadas e condições de trabalho péssimas, estaríamos, à partir daquele dia, No Exercício do Impossível.
Juro que foi um choque reler. Uma reflexão profunda se seguiu, anos passaram por minha mente tentando achar que tudo valeu a pena.
Aí chegamos em 2020. O Medo, a Angústia, a Incerteza, O Olhar o Mundo pelo Quadrado da Janela. Um ano impossível. Impossível de muito modos. Do geral para o individual, do medo extremo para a imprudência deslavada. Do choque e da dor não reconhecida nos outros, apenas em nós, quando o egoísmo abriu às portas para a desgraça.
Um ano impossível, onde milhares de cientistas não estão concorrendo entre si de forma predatória, onde empresas que querem a vacina primeiro, não estão boicotando que outras façam as suas. Um ano impossível no Brasil, com a sensação de que poderia ter sido diferente. Poderia mesmo?
Muito tempo atrás, um personagem, que era tido como medroso, dizia quando lhe pediam o que a norma não amparava no Banco do Brasil: Olha, eu sou temente a Deus. Esse era o seu limite. O que ainda se vê nesse 2020, ainda sem vacina, é que tem muito adulto que teima. A teimosia insana, daquela que dizia o cantor Bezerra da Silva na canção Malandro Demais vira Bicho, ao se referir para uma pessoa ter limites, que o cara vai ser pego e se ferrar.
Um ano impossível, um vírus, cujo efeito é carnal, doído, daqueles que provoca o arrependimento, talvez até, daqueles que mata pela culpa sem controle. Tenho convicção, que não tem estatística que simplifique, quando a desgraça se abate sobre nós.
Um ano que criou em milhões de pessoas uma urgência de viver quase paranoica, uma disciplina que não queria ter, uma criatividade quase sem fim para dar conta da sanidade mental, um exercício de paciência jamais experimentado por muita gente, uma fome de viver jamais percebida, um certo sentimento de dor e amor, como os dois braços fazendo uma cadeirinha para orarmos por alguém prestes a morrer. Um medo visceral, dias a fio.
Aí veio Clarice Lispector a nos provoca à reflexão. E se sua afirmação fosse uma pergunta? O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós?
Eu não tenho resposta. E vocês?
Ademar Rafael Ferreira
Naquele
dia, ao acordar, o menino da canela fina, magro e comprido para os seus nove anos ganhou a rua, mas parou na calçada da sua casa. Achou tudo diferente.
Muita gente parada perto da igreja, na rua, no calçamento, onde à
noite ele e os amigos faziam de campo de futebol.
Preocupado,
andou até a casa do seu avô, entrou e ficou conversando com a sua avó. Não
lembra ter visto o vovô, que naqueles tempos andava trabalhando como fiscal temporário
do agronegócio do Banco do Brasil.
No
meio daquela conversa, a sua avó serviu o cuscuz, feito de milho com uma pitada
de goma de mandioca. Cuscuz ligadinho. Colocou um pouco de leite e ensopou com o
molho do bife de caçarola. Comeu com gosto e beliscou a xícara de café. Achou
forte e mesmo atolando o açúcar, o menino não bebeu. Se levantou quando a
empregada recolheu o prato e em seguida ouviu:
-
Venha meio-dia, que o seu avô vai trazer aquele doce de leite que você gosta.
-
Posso almoçar aqui?
-
Pode, avise a seu pai.
-
Tá certo, vovó.
-
Vou em casa pegar as minhas coisas para ir a aula de dona Maria do Carmo.
-
Acho que hoje não vai ter aula.
O
menino não entendeu esta última frase, deu a benção à avó e saiu correndo pela
casa até a calçada, nela parou de novo. A multidão tinha crescido. As
escadarias da igreja matriz estavam lotadas. Muita gente sentada à sombra.
O
menino andou mais um pouco. Viu que a praça também estava repleta de adultos.
Caminhando lento, ele foi ficando invisível diante daquelas pessoas. Com
cuidado, de menino que andava sobre muros, ele caminhou. Cinco passos, uma parada.
Avaliava o terreno e voltava a andar. Foi assim que chegou na frente do bangalô
branco, alpendrado do lado direito, com frisos dourado correndo toda a casa.
Na calçada olhou para cima, para o alpendre e viu os adultos, muitos da idade do seu pai ou do seu avô, sentados na varanda. Não conversavam. Estranhou, ele costumava ver esses homens falando livremente.
Tudo ao redor era
silêncio. Ele não lembrava direito, mas olhou para a parte de baixo da praça e
viu as portas dos comércios arriadas até a metade. Captou a anomalia, mas não
soube interpretar.
Ele
sentia que alguma coisa estava ocorrendo. Aproveitando que estava invisível para a
multidão, o menino de canelas magras esticou os braços e pegou no parapeito do
janelão, puxou o corpo e pisou na beirada pequena que tinha na metade da
parede. Apoiado precariamente, olhou para dentro do quarto e ficou vendo o que
se passava.
Viu
um homem deitado de pijama, uma mulher vestida de preto sentada ao lado dele. O
homem respirava com dificuldade, puxava muito ar. O menino via e não
compreendia. Quando o homem deu a última suspirada e se aquietou, a mulher se
levantou, cruzou as mãos dele e saiu do quarto.
Ainda
pendurado sobre o parapeito da janela, o menino ouviu um grito e da escada
desceu um homem correndo, muito emocionado.
Ainda invisível, o menino desceu da janela e foi procurar uma sombra. Lá ficou observando todo o movimento. Vários minutos depois, o homem que havia saído muito emocionado voltou, ainda muito nervoso e em seguida entraram outros homens com um ataúde.
Depois de um tempo, sentado entre os adultos, ele viu o avô chegar na calçada do bangalô. Ele atravessou a rua e encostou nele, recebeu um afago e ouviu:
Semana Iluminada
Marconi Urquiza
Eu me preparei para escrever um conto e não uma crônica. Ando sem inspiração para crônicas, acho que a minha vibe nesse momento é escrever contos. Neles posso sonhar, voar, navegar, misturar real com a fantasia, inventar tudo. Para hoje eu escrevi, até escrevi um: A Assinatura do Cabrito Bodinho.
No correr de ontem fiquei na maior indecisão e terminei por escolher um conto de Clarice Lispector. UM CONTO FANTÁSTICO. É também minha homenagem aos 100 anos de nascimento de Clarice. Além disso, é um conto que me identifico profundamente, tanto pelo objeto desejado, quanto por me fazer lembrar que a felicidade pode estar nas coisas simples.
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
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