quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

RETROSPECTIVA SENSORIAL



                                            Poema de Ademar Rafael Ferreira
      Mesmo com dores terríveis
       No joelho, punho e mão
       Com insônia que perturba
       A mente e o coração.
       Sei que após a tempestade
       Dias melhores virão.

       Que é isso de sensorial? 
       Na falta de uma palavra no vocabulário e da preguiça em consultar dicionários eu deixei assim mesmo. Nos acostumamos ver na tevê programas de retrospectivas,  em um ano em que a sociedade brasileira andou de braço dado com a teimosia e com a morte, muitas evitáveis. 

       Pois bem, cabe a cada um fazer a sua. Eu compartilho a minha.

      Começo pelo Medo.  Como senti! Aquele medo raiz, ancestral. Mas em vez de ter correr para se salvar, a salvação foi ficar parado.  Em casa. 

       Veio a insegurança. E o futuro? Qual o sentido de vida para quem está com 61 anos. Achá-lo, transformar em objetivo e agir. Felizmente estava em andamento a liberação da escrita como razão de viver. Falta-me ser lido. De março para dezembro escrevi 100 páginas de um romance.  Escrevi 48 contos e umas 30 crônicas, totalizando mais 300 páginas. Tudo organizado,  são três livros. 

      Mas aí veio o sufoco, um filho entrou na fila do desemprego.  O futuro dos meus filhos são o meu. Eles estando bem,  eu consigo levar a vida.

     A insegurança veio forte. Era hora de evitar que a sanidade mental virasse insanidade. Após  três anos, eu era quase um rato de academia.  Frequência de três a quatro vezes por semana. O físico em setembro estava definhando.  Depois  de mais um ano sem sentir as dores da artrose,  eu voltei a tê-las.

     Olhava o mundo pelo quadrado da janela, isto esgotou. Já não era suficiente.  Comecei a me refugiar na leitura das mensagens boas, o ruim me dava mal-estar. Fugia na irrealidade do mundo perfeito. Recusei o voluntariado para escrever o obituário dos mortos pela pandemia. Escapou uma, a do primo Ronaldo Tenório. 

      Em setembro estourei às costas,  machuquei o joelho direito, o punho começou a doer, a insônia se tornou péssima.  O corpo reclamava...  Não,  a vida reclamava. 

     Contrariando o senso comum,  criei os melhores contos,  resgatei por meio da fantasia imagens que andava, sei lá onde. Um passarinho que entrou na casa, o vento que se tornou personagem. A empregada que tem o mesmo odor corporal da patroa e por aí fui. Havia escrito dois romances, neles a vida é crua. Nos contos a escrita é bem diferente das dos romances, a leveza é a marca. Era de leveza que eu precisava.

     Passei a olhar o Mundo pelo Cuidado e pela Liberdade Provisória. Sabe, qualquer descuido,  podemos estar mortos em pouco tempo ou podemos ser assassinos, sem sabermos. O cuidado é mais que uma faceta da nossa vida mundana. A liberdade é vigiada pelo vírus.  

     Antes aprendi olhando,  atendendo , sendo um ouvido atento e respeitoso para os clientes, alguns doentes, vários terminais, especialmente os que chegavam na agência do Banco do Brasil,  Agamenon Magalhães,  em Recife.  Aqueles anos me deram um sentido de vida canino, em uma carreira que havia entrado no ocaso. Saí dos anos em que lá estive ciente que ser empático depende de um esforço permanente, fabulosamente gratificante. "O simples usar da máscara pode ter o mesmo sentido". Redescobri isto em 2020.

Que nos encontremos em 2021!




Feliz o AnoNovo, Iluminado como nunca.
Recife, 31/dez/2020

Marconi Urquiza 




sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

O NATAL DO MENINO QUE CORRIA COMO SE ANDASSE



Poema de Ademar Rafael Ferreira


       Ele atravessava a rua
       E a praça feito bala
       Entrava no quarto escuro
       Passando rápido na sala.


       Pra mexer com marimbondo
       Nunca lhe faltava gás
       Pra caçar dentro do mato
       Ele tinha um pé atrás.

       Com suas pernas de garça
       Corria como se andasse
       As “perninhas de abelha”
       Não tinha quem
       Aquietasse.
 
       O natal do menino buliçoso começava quando a prefeitura esticava os fios das lâmpadas no quadrado da praça. Esse era o sinal que as festas estavam perto.
       Na sua casa, a iluminação simples do natal na cidade era o início para se organizar o da família. O peru gordo já estava encomendado, a árvore de natal desencaixada, os enfeites limpos e pendurados na portas. Na virada para o mês de natal a corrida para Garanhuns. Era hora de comprar as roupas novas.
       Toda noite ele descia para a rua, ia olhar as poucas barracas com jogos, a roleta de ficha e a barraca de tiro ao alvo, tiro que nunca acertava.
       O Natal ia chegando, as casas das ruas se enfeitando como podiam. O menino gostava de correr as ruas de perto e olhar as casas com as suas árvores de Natal acesas. Parava numa casa, geralmente de porta aberta para as pessoas da rua as verem. Trinta segundos, olhava, corria para a outra, mais trinta segundos ou quanto o tempo a timidez permitisse.
      Era tempo de brilho na costumeira escuridão da cidade. Quando estava parado na pequena praça, perto da praça grande os seus olhos se enchiam da luz das lâmpadas amarelas incandescentes.
      Naquele ano a prefeitura criou um presépio e o colocou no meio da fonte da praça da matriz. O menino agitado, era como se tivesse uma bateria extra, parecia não gostar de andar, corria como se andasse. Como se tivesse pressa para tudo. Era a energia extra deixando-o elétrico.
      Em um final de tarde ele parou perto do presépio da praça grande e ficou olhando os bonecos. Viu o jumentinho, não gostou dos olhos pidões do Menino Jesus e prometeu que no dia de Natal, com a cidade toda dormindo, ele entraria na fonte para alisar a estrela grande.
     Promessa feita, olhou para o céu e esticou a mão para uma estrela que pulsava forte. Tá longe. Deu dois pulos e saiu correndo, atravessou a rua na diagonal e parou perto da calçada. Deu um giro sobre o corpo e olhou tudo ao redor. Cada casinha, cada comércio, a imensa igreja. Tudo estava iluminado.
       Se voltou para a calçada e olhou a casa à sua frente. A varanda estava às escuras, não tinha enfeite, as portas cerradas e a árvore de natal não havia sido montada. A casa do coronel estava triste.
       Pisando devagar desceu mais alguns metros e subiu a calçada da casa do seu padrinho, esticou o pescoço e ficou na ponta dos pés para ver o corredor da rica casa, estava doidinho para entrar, mas não tinha intimidade.
       Nisso viu o seu pai subir a rua, dirigindo devagar a Ford Rural verde e branca. Era hora do jantar. Correu e quando o seu pai entrava na casa, ainda da calçada da casa vizinha, ele gritou:
       - Pai?
       - Já tomou banho?
       - Não.
       - Vá logo, que hoje é natal.
      O menino correu dentro da casa, quase tromba em Maria Preta, escorregou na entrada do quarto, a prima Fina encostou e soprou no seu ouvido:
       - Vai logo, se não, você perde a vez. Agora de noite tem muita gente para tomar banho.
       Era Natal e só tinha um banheiro com água morna na casa.
       O menino deu meia volta, correu para o quintal pegou a sua toalha, arrastou uma cueca do varal e voando entrou no banheiro. Saiu dele na mesma ligeireza que havia entrado. Ali perto, Maria Preta arrumava a mesa para a ceia do natal, quando seu rosto surgiu na porta, ela avisou:
       - Cuidado menino, tem prato quente!
 
       Não gostava de andar
       Pra correr era dotado
       Só mesmo muito doente
       É que ficava parado.

      Tinha turbina nas pernas
       Igual asas de avião
       Por sempre viver correndo
       Sempre chamava atenção.

      Com suas pernas de garça
      Corria como se andasse
      As “perninhas de abelha”
      Não tinha quem
      Aquietasse.

      Só um pouquinho devagar, andou como corresse, chegou na porta do seu quarto e estancou. Viu sobre a cama o seu traje completo: calça curta, camisa xadrez e as meias. Esticou os olhos e viu perto da cabeceira da cama o brilho dos sapatos e o cinto enroladinho dentro do pé direito. Paralisado, toda a sua agitação cessou, a prima Fina encostou mais uma vez:
- Vai logo, já então todos na mesa. Só falta você.



Feliz Natal,
Ano Novo Iluminado.

Marconi Urquiza

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                  "A imensa igreja"

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A praça Dom Pedro II, em Bom Conselho, no tempo 
narrado pela crônica.




sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

2020, ano da empatia?

      
      Tentei mandar a um amigo 
      A paz, amor e alegria.
      Com afagos e presentes
      Eu gastei muita energia. 
      Reformei minha atitude,
      Vi o trio em plenitude, 
      Quando mandei EMPATIA.
         (Ademar Rafael Ferreira)

     Em 2020 a empatia surgiu muito forte.  Muita gente tornou ela um valor a lhe dar sentido às suas vidas. 
      Mas tem gente que destoa ou não se importa em praticá-la. Isto se revela ao se aglomerar, não usar as máscaras, entre outros comportamentos egoístas. 
      Nesta semana, ao ler parte do discurso do ministro da saúde, vi que ele reclamou da ansiedade pela vacinação.
      Será que ele sabe o que é isso? O que sentiu ao ficar na UTI? Foi só medo?
      Tem fala, que de tão transformada em uma coisa, não toca, passa como um vento imperceptível. Nada contribui.
       Que humano foi esse que escreveu aquele discurso? Cheio de certezas e zero de empatia.
       Muito tempo atrás em uma aula, um professor convidado veio palestrar, comentava pormenores de sua pesquisa para a tese de doutorado.  Essa pesquisa envolvia líderes ativos e líderes aposentados da igreja católica. 
      Um aspecto chamou a atenção nessa palestra: a forma como os entrevistados respondiam às perguntas.
      Os líderes da ativa,  segundo o palestrante, falavam chavões o tempo inteiro do discurso institucional. A pose, às vezes, era magnâmica. Ali estava o CNPJ encarnado em um indivíduo,  que respondia, sem responder. 
     No outro grupo de entrevistados, estavam os ex-líderes, agora aposentados.  Disse o professor que alguns deles, sem as vestes do cargo, eram capazes de dizer: "Senta aqui filho! Fique à vontade e muita vezes se sentavam no mesmo sofá". As respostas dessas pessoas, eram, na maior parte,  precisas e diretas. Até empáticas.
      Olhando o discurso do general Pazuello, veio à mente os discursos corporativos escutados ao longo de  vários anos. Palavras bonitas,  às vezes de ânimo, frequentemente vazias de sentimentos. 
     Quando se conhece a dor de uma família com um doente de covid, quando se dá de cara com o médico angustiado ou quando ouvimos um muito obrigado, o sentimento costuma ser o mesmo: de empatia. 
    Empatia, só isso muitas vezes basta.

 2021, Ano Super Empático.
Abração, 
Marconi Urquiza

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

2020, um ano impossível?

 

2020, Um Ano Impossível?

     Nesta semana foi a maior comemoração do ano, 100 anos de Clarice Lispector. Tanta coisa foi dita, tantas lives e citações nesta semana foram feitas. Imagens e  mais imagens dos seus livros e dela mesma. Pelo menos para mim esse excesso de menções não deu-me o efeito de enjoo.

     Estava a procura de um assunto quando li no Instagram a frase de Clarice. Vou repeti-la:

     O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós. 

     Foi como estar dentro de um ônibus quando o motorista dá uma freada brusca e nos pega desprevenidos, nos jogando para trás e a para frente sem tenhamos como controlar os nossos movimentos. É quase uma topada que nos joga na calçada.    

    Quem já não fez coisas que classificou de impossível?  

    A frase de Clarice Lispector foi um link sem filtros para uma realidade que não recordava mais e que ao reler, depois de dezessete anos, me senti perplexo. Uma perplexidade pelo uso da palavra impossível, ainda mais por sentir o que o havia escrito teve dimensão histórica de uma superação de dificuldade que era um contraponto a todo que é organizado, o caos. É que falei aos colegas do Banco do Brasil em Surubim, naquele ano da graça de 2003, naquele mês de agosto, que dada as circunstâncias de metas muito elevadas e condições de trabalho péssimas, estaríamos, à partir daquele dia, No Exercício do Impossível

     Juro que foi um choque reler. Uma reflexão profunda se seguiu, anos passaram por minha mente tentando achar que tudo valeu a pena. 

     Aí chegamos em 2020. O Medo, a Angústia, a Incerteza, O Olhar o Mundo pelo Quadrado da Janela. Um ano impossível. Impossível de muito modos. Do geral para o individual, do medo extremo para a imprudência deslavada. Do choque e da dor não reconhecida nos outros, apenas em nós, quando o egoísmo abriu às portas para a desgraça.

     Um ano impossível, onde milhares de cientistas não estão concorrendo entre si de forma predatória, onde empresas que querem a vacina primeiro, não estão boicotando que outras façam as suas. Um ano impossível no Brasil, com a sensação de que poderia ter sido diferente. Poderia mesmo?

     Muito tempo atrás, um personagem, que era tido como medroso, dizia quando lhe pediam o que a norma não amparava no Banco do Brasil: Olha, eu sou temente a Deus. Esse era o seu limite. O que ainda se vê nesse 2020, ainda sem vacina, é que tem muito adulto que teima. A teimosia insana, daquela que dizia o cantor Bezerra da Silva na canção Malandro Demais vira Bicho, ao se referir para uma pessoa ter limites, que o cara vai ser pego e se ferrar.

      Um ano impossível, um vírus, cujo efeito é carnal, doído, daqueles que provoca o arrependimento, talvez até, daqueles que mata pela culpa sem controle. Tenho convicção, que não tem estatística que simplifique, quando a desgraça se abate sobre nós.

      Um ano que criou em milhões de pessoas uma urgência de viver quase paranoica, uma disciplina que não queria ter, uma criatividade quase sem fim para dar conta da sanidade mental, um exercício de paciência jamais experimentado por muita gente, uma fome de viver jamais percebida, um certo sentimento de dor e amor, como os dois braços fazendo uma cadeirinha para orarmos por alguém prestes a morrer. Um medo visceral, dias a fio.

      Aí veio Clarice Lispector a nos provoca à reflexão. E se sua afirmação fosse uma pergunta?  O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós? 

      Eu não tenho resposta.  E vocês?

     

     Abração.
     Semana Iluminada,  Marconi Urquiza

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O menino invisível

 

     Se um menino traquina
     Aos pais ele não responde
     Se entoca num lugar
     Que só ele sabe onde.
     Numa rapidez incrível
     Se transforma em invisível
     No lugar onde se esconde.

                  Ademar Rafael Ferreira


Naquele dia, ao acordar, o menino da canela fina, magro e comprido para os seus nove anos ganhou a rua, mas parou na calçada da sua casa. Achou tudo diferente. Muita gente parada perto da igreja, na rua, no calçamento, onde à noite ele e os amigos faziam de campo de futebol.

Preocupado, andou até a casa do seu avô, entrou e ficou conversando com a sua avó. Não lembra ter visto o vovô, que naqueles tempos andava trabalhando como fiscal temporário do agronegócio do Banco do Brasil.

No meio daquela conversa,  a sua avó serviu o cuscuz, feito de milho com uma pitada de goma de mandioca. Cuscuz ligadinho. Colocou um pouco de leite e ensopou com o molho do bife de caçarola. Comeu com gosto e beliscou a xícara de café. Achou forte e mesmo atolando o açúcar, o menino não bebeu. Se levantou quando a empregada recolheu o prato e em seguida ouviu:

- Venha meio-dia, que o seu avô vai trazer aquele doce de leite que você gosta.

- Posso almoçar aqui?

- Pode, avise a seu pai.

- Tá certo, vovó.

- Vou em casa pegar as minhas coisas para ir a aula de dona Maria do Carmo.

- Acho que hoje não vai ter aula.

O menino não entendeu esta última frase, deu a benção à avó e saiu correndo pela casa até a calçada, nela parou de novo. A multidão tinha crescido. As escadarias da igreja matriz estavam lotadas. Muita gente sentada à sombra.

O menino andou mais um pouco. Viu que a praça também estava repleta de adultos. Caminhando lento, ele foi ficando invisível diante daquelas pessoas. Com cuidado, de menino que andava sobre muros, ele caminhou. Cinco passos, uma parada. Avaliava o terreno e voltava a andar. Foi assim que chegou na frente do bangalô branco, alpendrado do lado direito, com frisos dourado correndo toda a casa.

Na calçada olhou para cima, para o alpendre e viu os adultos, muitos da idade do seu pai ou do seu avô, sentados na varanda. Não conversavam. Estranhou,  ele costumava ver esses homens falando livremente. 

Tudo ao redor era silêncio. Ele não lembrava direito, mas olhou para a parte de baixo da praça e viu as portas dos comércios arriadas até a metade. Captou a anomalia, mas não soube interpretar.

Ele sentia que alguma coisa estava ocorrendo. Aproveitando que estava invisível para a multidão, o menino de canelas magras esticou os braços e pegou no parapeito do janelão, puxou o corpo e pisou na beirada pequena que tinha na metade da parede. Apoiado precariamente, olhou para dentro do quarto e ficou vendo o que se passava.

Viu um homem deitado de pijama, uma mulher vestida de preto sentada ao lado dele. O homem respirava com dificuldade, puxava muito ar. O menino via e não compreendia. Quando o homem deu a última suspirada e se aquietou, a mulher se levantou, cruzou as mãos dele e saiu do quarto.

Ainda pendurado sobre o parapeito da janela, o menino ouviu um grito e da escada desceu um homem correndo, muito emocionado.

Ainda invisível, o menino desceu da janela e foi procurar uma sombra. Lá ficou observando todo o movimento. Vários minutos depois, o homem que havia saído muito emocionado voltou, ainda muito nervoso e em seguida entraram outros homens com um ataúde.

Depois de um tempo, sentado entre os adultos, ele viu o avô chegar na calçada do bangalô. Ele atravessou a rua e encostou nele, recebeu um afago e ouviu:

- Vá para casa, aqui vai encher de gente, - o menino ainda olhou ao redor na busca de um amigo para brincar e recebeu um tapinha leve, lhe chamando a atenção e em seguida o avô falou de novo: - Vá, o coronel morreu.


Semana Iluminada

Marconi Urquiza

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

FELICIDADE CLANDESTINA - Clarice Lispector


 

         Eu me preparei para escrever um conto e não uma crônica. Ando sem inspiração para crônicas, acho que a minha vibe nesse momento é escrever contos. Neles posso sonhar, voar, navegar, misturar real com a fantasia, inventar tudo. Para hoje eu escrevi, até escrevi um: A Assinatura do Cabrito Bodinho.

     No correr de ontem fiquei na maior indecisão e terminei por escolher um conto de Clarice Lispector. UM CONTO FANTÁSTICO. É também minha homenagem aos 100 anos de nascimento de Clarice. Além disso, é um conto que me identifico profundamente, tanto pelo objeto desejado, quanto por me fazer lembrar que a felicidade pode estar nas coisas simples.

FELICIDADE CLANDESTINA - Clarice Lispector (Do livro: Felicidade Clandestina - Ed. Rocco)

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


Semana Iluminada.
Marconi Urquiza

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Tá com medo do que cara-pálida?


Estas palavras são fruto da minha indignação, apenas isso. 
Você não precisa concordar com elas.

     Você tá com medo do que cara pálida? Éramos desse modo apresentado aos desafios profissionais por um dos meus chefes. Era um chamado aos nossos brios, afora outras expressões que nos instigava à superação das metas. Era força de um Super Homem, a coragem e a estratégia de um Homem de Ferro e a vaidade de um anti-herói como Lampião, tudo junto em cada um dos ouvintes.

     Aqui e acolá, alguém, nas rodas miúdas, escorregava em alguma vírgula misógina, um ponto e vírgula homofóbico. Mas nada tão agressivo e generalizado como nos tempos atuais. Nesses dias voou a palavra boiola, planou a maricas. Mais do mesmo, o discurso de uma verve dirigida. Boiola para um nordestino, maricas para um paulista.

     Ambas as palavras para estimular o viés machista, do macho mau, valente e que se fizer bobagem pode ouvir em resposta: o que você fez é problema seu. Em outras palavras: foda-se sozinho. Aí quando alguém, que foi estimulado por tais arroubos retóricos, se encontrar em algum tribunal judicial vai se lembrar que deveria ter sido cauteloso, respeitoso.

     É tudo Coronavírus, agora é tudo Coronavírus! É quase, nem tudo. Mas em 2020 ele é o líder mais importante do mundo. É o maior ditador de todos os tempos, é o maior bandido de todas as épocas, é indutor de comportamentos, para o bem ou para o mal. Quem vai para o bem tem chance de sofrer menos, que vai para o mal, tem a chance de se transformar em um defunto, em um doente crônico. Padecer sob mil angústias por não ter sido prudente.

     Se maricas significa ser cauteloso, eu sou; se maricas significa ser temeroso com a própria vida, eu dobro. Se maricas significa respeito a uma força na natureza, por hora, indomável, eu prefiro curtir a vida que me foi concedida.


Abração. 
Semana Iluminada.

Marconi Urquiza

O poder revela ou transforma uma pessoa?

  imagem: Orlando/UOL.            Um papo na última segunda-feira entre aposentados do Banco do Brasil que tiveram poder concedido pela empr...