Fotografia, presumo de 1977. Sou o único de calção, do lado está meu pai.
10 de novembro de 1982.
Nesse dia eu acordei cedo para tomar banho. Morava em uma república, onde os três moradores eram todos bancários e o trabalho começava às sete horas da manhã.
Foi um dia normal de trabalho. Calor, ainda mais na agência do Banco do Brasil de Afogados da Ingazeira, que não era climatizada. Por volta de uma hora da tarde saí para almoçar na pensão de dona Duda.
Um dia onde a rotina se repetiu, inclusive o estudo que fazia sentado no chão para um concurso interno do Banco e que utilizava uma mesa improvisada, feita com duas caixas enormes de papelão.
Já há alguns meses eu fazia este estudo. Na maior parte do tempo era um estudo solitário, em uma casa desprovida de conforto, estranhamente fria para ser uma morada d
o sertão.
Nesse dia nem havia me dado conta de um pensamento que me perseguia, que se repetia diariamente muitas vezes ao dia, meses a fio. Tanto que, em certo momento, eu pensei que estava endoidando. Hoje posso dizer que ele trazia uma certa premonição.
Bem, mas certo dia ele sumiu e eu não notei.
Por volta do final da tarde daquele dia chegou na casa onde eu morava o colega Paulo Williams e me disse que meu pai havia sofrido um sério acidente, mas que estava bem.
Quando eu ouvi recado dei um tapa nas caixas de papelão e me levantei. Segui para a agência do Banco do Brasil, na agência encontrei os quatro gerentes das agências da região. Além de Afogados da Ingazeira estavam, o de Tabira, Carnaíba e Iguaraci.
Assim que sentei Ronald Teixeira, que era o meu gerente, fez alguns comentários e, eu, penso que falei alguma coisa.
Em um pouco mais de cinco minutos dois telefones de Garanhuns-PE. No primeiro a conversa foi feita em tom baixo. Depois disso eu disse que sabia da morte de papai. Então chegou outro telefonema e desse eu ouvi claramente Ronald dizer: Ele está consciente. Ali mesmo já recebi a informação que um carro viria me pegar em Arcoverde.
Em certo momento, creio ter dito, da minha consciência da sua morte por causa da situação que havia transformado aquela campanha política em uma guerra e principalmente, por causa daquele pensamento que se arrastou, ininterrupto, de março a outubro de 1982. Uma realidade que foi excruciante, como disse antes, eu pensava que estava endoidando.
" Marne, morte". Esta era a mensagem que rodava em minha cabeça.
Uns minutos depois eu dei uma fungada, mais outra, chorei um pouco e controlei o choro. Na melhor medida da praticidade eu disse que não tinha como ir para Arcoverde. Paulão se dispôs e me levou. Do percurso de 125 km eu lembro pouco. Chegamos lá por volta da sete da noite e o acordo era para me levar para o quartel da Polícia Militar de Pernambuco.
O oficial do dia me recebeu, um rapaz jovem, oriundo do Exército. Conversei um pouco com ele. Fiquei sentado um tempão, até que ele me ofereceu a cama do oficial do dia e fui lá me deitar. Mas não consegui cochilar, apenas li a Evangelho Segundo o Espiritismo. Lia, repetia, tentava encontrar conforto naquelas palavras. Um pouco achei, mas a minha mente estava vazia. Havia apenas em mim a dor, que de tão doída, não doía mais.
Perto da meia noite chegou um Ford Corcel II, nele veio Olinto, amigo de papai, o motorista de Manoel da Pedra e dois policiais. Me sentei no meio do banco de trás e seguimos para Bom Conselho por Belo Jardim.
Em São Bento do Una, o motorista reclamou de sono. Menos eu, todos estavam mortos de sono. Eu disse a eles que podia dirigir e dirigi duas horas, quando às duas da manhã de 11 de novembro eu entrei em Bom Conselho e vi a Igreja Matriz do Alto do Colégio as lágrimas voltaram. Umas poucas.
Cheguei em casa, ainda tinha muita gente, que só encheu ainda mais durante o dia. Minha mãe veio me receber e disse, entre lágrimas: Viu o que fizeram com ele?
Após o enterro, às sete da noite nos reunimos para jantar. Eu olhei em direção à porta de entrada da nossa casa e vi todos os móveis afastados para os lados, era um vão enorme. Mas o vazio, um silêncio que nos engasgou, foi uma sensação tão forte, que quando eu consigo consolar alguém por causa de uma perda, sempre me lembro que essa pessoa pode estar sentindo a mesma coisa.
Por volta da meia noite é que me deitei, quatro horas depois acordei com uma puta cãibra nas duas pernas. Havia ficado 44 horas sem dormir.
Voltei para Afogados da Ingazeira no dia 15 de novembro, cheguei lá a meia noite.
No dia 16 eu fui trabalhar. Cheguei cedo, recebi os cumprimentos e sentei para trabalhar. Trabalhei uma meia hora. Acho que tentei.
Em certo momento eu pensei em papai e me desliguei de tudo que estava ao meu redor. Nem notei que silenciosamente eu chorava, as lágrimas desciam forte pelo meu rosto.
De repente eu comecei a ouvir meu nome distante. Marconi, Marconi, Marconi. Até que senti nas minhas costas a mão de Socorro Góes e de novo, Marconi.
Passei a mão no rosto e olhei para ela, nem sei se agradeci, voltei a trabalhar.
Se ela não me chama, acho que teria chorado horas a fio sem sentir nada do que se passaria ao redor.
Nos meses seguintes começou, quase como uma ideologia de sobrevivência, a determinação de olhar sempre para frente. De se lastimar o menor tempo possível. De dizer e repetir sempre quando algo ruim ocorria: "Hoje já foi, amanhã tem mais! " Amanhã tem mais para fazer.
Ainda há o amanhã para ver uma luz diferente.