sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Resiliente como vara de marmeleiro

 

Um dos maiores exemplos de fora interior
Nelson Mandela

   Ouvi na infância que devemos ser como vara de marmeleiro, que entorta mas não quebra. 

    A crônica desta semana não é um texto memorialista ou literário. Esta mais próximo de uma reflexão.
   
    Algumas vezes eu recebo pedido para escrever sobre algum tema. Um amigo me pediu para escrever sobre derrota e resiliência.  Disse-lhe que já começaria a pensar no assunto.  Naqueles minutos de nossa conversa pelo Whatsapp eu estava em processo de revisão e ajuste do romance A Puta Rainha.  Uma tarefa de compilação.  Minutos depois fui tomar água e encostei a barriga na meia parede da área de serviço. Fiquei ali olhando a avenida,  os prédios do bairro Rosarinho.  

     Eu pensava no tema colocado pelo amigo, de repente, como em outros momentos, veio o início da escrita. Saí acelerado para não perder aquele impulso inicial. Assim nasceu um CONTO (link do final).

     Depois fiquei refletindo. O melhor seria que a gente vivesse sempre com o olho no real, sem alimentar expectativas sonhadoras ou nenhuma. E que dentro desse real estivéssemos preparados emocionalmente e economicamente para os infortúnios.  Que o plano B não fosse apenas um desejo, que desde sempre ele funcionasse em paralelo. Possivelmente, a resiliência seria mais fácil e rápida. 

     Mas, como seres normais, que às vezes até percebe que alguma tempestade está chegando, no entanto tem a emoção,  dentro dela a negação.  Isto aconteceu comigo, a minha auto ilusão me custou muita dor e exigiu muito mais energia para escapar do buraco perigoso de uma depressão. 

     A resiliência deve ser um processo,  maduro, refletido,  pensado de modo constante,  trabalhando alternativas realistas, olhando o mundo como ele é. 

     Como ela não é um processo mental aleatório,  pode ser que a pessoa necessite de ajuda, é fundamental reconhecer e ter humildade quando sentir que sozinha o caminho vai ser um buraco sem saída. 

     Mas a resiliência é também um ato de fé, daquela fé que move uma pessoa na busca pela luz, que produz calma e que pode rege-la na busca pela superação. 

     Há outro fator, que ajuda na resiliência, é se manter vigilante.  Nas relações abusivas,  seja no assédio moral,  sexual no trabalho. Seja em um convívio de alguma casa (não lar), o abuso é um fator paulatinamente crescente, por que uma esperança vã toma o lugar da vigília.  Em algum momento o medo toma conta de tudo, inviabilizando qualquer reação. 

    Esse é outro fato a quebrar a resiliência. O medo insano, o doentio. Por isso é necessário se manter atento e reagir antes que uma paralisia emocional acorrente qualquer espírito de luta. 

    Essa foi uma das grandes dificuldades que tive de tratar deste tema. Pois ser resiliente, para mim, é usar um conjunto de atributos. 

     Se de todo modo, não se imaginar um caminho para ser resiliente, use a Santa Teimosia, aquela que está no fundo do coração,  aquela que é significante para ter um sentido de vida.   

Pois bem:

   Paz, não é ciência,
       Sentimento menos ainda.
       Conhecer não é ter sapiência,
       Caindo precisa se levantar,
       Para superar recorra à resiliência.

       
Semana Iluminada, 
Marconi Urquiza 

EIS O CONTO:

A paz desejada

 A PAZ DESEJADA


Algum dia, em algum momento, France acordou com um sonho que dizia que seu pai morreria. Foi forte, naquela manhã não se assustou.

Vivia em um turbilhão no emprego novo, diferente do ambiente de camaradagem que vivera até então.

Regras escritas não faltavam, regras a ser aprendidas também não. Regras, as quais só à custa de tempo, reflexão e experiência viriam a ser conhecidas.

Sentia uma dificuldade enorme no novo emprego, em certo momento, depois de muitos meses pensou em desistir. Era um sobrevivente e tentava sobreviver naquele mundo novo, briguento e brigado.

Nada do ambiente amigo que havia experimentado era presente nesse mundo novo, ela pensava que um trabalho com base na amizade, cordialidade e diálogo produzia mais. Estava se enganando.  Os patrões não queriam isso, trabalhavam para que a disputa entre seus empregados produzissem riqueza para a empresa. Se alguém abusasse, fora. Se alguém se tornasse inconveniente, fora. Se alguém se tornasse um arquivo vivo, virava alvo. Se não destruíssem a sua alma, valia o físico. Zero de risco.

France, depois de muito tempo se adaptou, tanto que que progrediu. No entanto, manteve em sua alma aquela porção de ingenuidade: confiar nas pessoas.

Mas essa confiança a traiu, quando viu que estava ferrada disse para si que era preciso fazer alguma coisa: sobreviver.

Arrumou as coisas e foi trabalhar em outro lugar. “Preciso olhar para frente. As coisas lá de detrás já foram”. Isso foi se transformando em um mantra: olhar sempre para frente.

Um dia a chamaram. No meio da conversa uma frase parecendo solta foi dita. Ela tocou na mente de France. Pensou em indagar, só pensou. Pensou e engoliu. Nesse tempo a teimosia santa já fazia parte do seu kit para sobrevivência.

Se alguém mais chegado a chamava de teimosa, ela dizia: “Não sou teimosa, sou persistente”.  Quando ouvia: “Mas como persistente?” Ela se calava, não queria dar munição a ninguém.

Um dia, sabe, um dia ela ouviu: “France, você tem que se reinventar”. Ela olhou para a interlocutor e ficou pensando: “Ele não me conhece, nada sabe da minha vida. Me reinvento há dez anos”.

Tais reinvenções nada tinham a ver com a percepção daquele seu chefe. Tudo que tinha feito era demonstrar que não estava obsoleta. Mas ela tinha um problema. Os seus valores eram considerados arcaicos. A sua adesão aos valores novos era seletiva. Travava quando achava que alguma atitude seria desonesta, mesmo sacrificando algum ganho.

Certo dia disseram que ela estava fora, France afundou. Ficou meses perdida nos seus pensamentos. A sua ingenuidade a impediu de se defender. A raiva deu lugar para a tristeza e lambeu a porta da depressão.

Depois de muito tempo, ela disse: “Não posso ficar nessa tristeza mais três dias”.

Fez uma escada no barranco e foi levantando degrau a degrau. Quando o buraco ficou para trás, ela se encontrou com seu algoz. O impulso fez ela querer agredi-lo, foi salvo por que aquele homem percebeu o perigo e saiu sorrateiramente.

“Ele tem costas largas, eu tenho raiva”.  Pensou em se vingar. Era preciso mostrar o seu valor. Planejou tudo. Tudo. 

Um tempo depois ela se sentou no sofá da sua casa. Estava agitada, agradecendo a Deus não ter agredido a quem achava que sido o ordenador da sua desgraça.

O seu viver, a duras penas estava se reorganizando. Lutava com poucos recursos, usava toda a sua inteligência e os seus conhecimentos para tocar a nova vida.

Aos poucos o ódio foi sendo domado, aos poucos France foi percebendo a sua força. A sede de vingança foi sendo controlada, até que um dia se encontrou com seu desafeto. Olhou para ele, fez questão de cumprimentar, desejou dizer toda a raiva que sentiu, apenas disse: Bom dia.

Selou para o seu coração a paz desejada.

Marconi Urquiza

31/01/2021 – 15:32h

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Dona Neia

     
Foto extraída do perfil do Facebook: Neia Leduc

Quantas vezes a gente se encantou com alguns exemplos de vida? Muitas, poucas,  algumas?
     O assunto poderia ser o voluntariado,  mas o que li vai além deste termo e não representa toda a essência da história de Dona Alcidineia. 
     Sou voluntário para revisão das entrevistas realizados para vários projetos do Instituto Museu da Pessoa (https://museudapessoa.org/). Li e revisei 16 entrevistas.  Algumas longas, entre 20 a 30 páginas de A4, chegando algumas delas a 10.000 palavras. Outras bem reduzidas,  mal dava 5 páginas do mesmo tamanho. Na maioria havia pretensão de que pessoas trouxessem fatos significativos: para elas, para as empresas,  para os leitores. 
    Li várias do projeto Memória da Petrobras.  A maioria delas, as pessoas estavam tão amarrados ao dia a dia da empresa,  temerosos como poderiam ser interpretadas na sua fala que, se não fosse o contrato com as empresas,  o Museu da Pessoa poderia dispensá-las. Nada ou pouco acrescentam.  Em tempo: As que revisei.
   Um outro grupo foi do Laboratório Aché. Nestas ficou claro a extrema preocupação em falar bem e pouco. São as mais reduzidas. Na minha opinião, vazias de significados. Para mim se tornou evidente que os entrevistados estavam, para lá de vigilantes. Como se os entrevistadores fossem o braço mais severo do lado punitivo da empresa.  Sou eu interpretando. 
    Teve uma entrevista realizada com a gestora da Associação do Edf. Conic, de Brasília. Foi a primeira de uma gestora social em que um braço empresarial não estava por trás e o que percebi: respostas soltas,  pensadas pela mulher sem outras preocupações. Também senti que o trabalho que ela faz tem profundo significado para a sua vida. Interno. Do seu âmago.  "Conic, a praia de Flávia." Dei este título à entrevista. 
   Nesta semana recebi a entrevista de Dona Alcidineia dos Santos Leduc. É preciso que a leia quando estiver disponível.  Não dá para resumir. É o voluntariado e liderança social no sentido mais puro. Da entrevista sai um sentimento profundo de uma atuação alegre, de onde se sente que a sua energia busca o engrandecimento de outros semelhantes, na recuperação de pessoas tragadas pelas drogas, capaz de criar uma escola de samba onde a música não é acompanhada pela bebida. Carnaval sem bebida alcoólica. Já viu um negócio desses?
     Na entrevista precisamos levantar palavras-chave e marcarmos passagens que nos chama atenção. Uma das frases me fez lembrar de um poema que inicia assim: "Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante que a velocidade". Aí, quando encerrei a revisão eu fiquei pensando e disse para mim, esta frase tem um sentindo mais profundo que apenas a interpretando pelo lado físico.
      Veja:
      - "Carregar mudança é carregar entulho (isto no sentido físico)" 
    Você já pensou, no sentido metafórico, que levar mudança é levar entulho? Já imaginou,  já? 
      Já no final da entrevista há uma pergunta padrão, o que a pessoa entende de mais especial na sua vida, no seu local, no que faz. É uma pergunta aberta e ampla. 
     Dona Neia foi na lata ao responder:
   - Aqui em Sete Barras (SP) o que tem especial é o "bom dia" e o "boa tarde". Fora daqui não tem isso. Falamos de 2011.
   Quase de imediato lembrei de um sinhozinho, caminhante do Parque Jaqueira, caminhando ao contrário do fluxo e a cada pessoa ele dizia: "Bom dia ainda existe". Uns minutos depois veio como um filme os gestos e voz de Padre Arlindo, de Tamandaré,  aqui em Pernambuco:
    - Bom dia! Boa tarde! Boa noite! - Assim mesmo, vibrando.
    Não sei se já pensaram nesta indagação.  Qual o impacto positivo de um "bom dia" dito com vibração no humor de uma pessoa? Você mesmo.
   Quem sabe eu não tenha um tesouro, outra entrevista para revisar, como essa de Dona Neia , repleta de significado, na próxima semana!

Semana Iluminada, abração!!
Marconi Urquiza 

LINKS DAS CITAÇÕES
A entrevista de Flávia:
Link do Museu
Poema de Edson Marques
Neia Leduc
Vídeos do Padre Arlindo

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

No exercício da paciência



      Gatinho lindo e desconfiado.
      Fotografia de Ana Reguart

      VENCER O CORONAVÍRUS?
      SÓ MESMO COM A CIÊNCIA 
      SÓ HAVERÁ PERDEDORES 
      COM ATOS DE PREPOTÊNCIA.
      É A HORA DA RAZÃO 
      DA FÉ,  DA VACINAÇÃO,     
      DA MÁSCARA,  DA PACIÊNCIA. 
      Ademar Rafael a nos inspirar em termos paciência. 

      CHUVA NO LAGO,
      CADA GOTA,
      UM LAGO NOVO. 
      Alice Ruiz a nos lembrar a ter esperança.     

    Estava perdido,  não tinha assunto e ao mesmo tempo não há falta de um. É como padecer no paraíso. 
     A vacinação começou. 
     Em 1987, em algum domingo de maio, eu estava na casa do meu sogro.  Naquela noite eu fui dormir depois das onze horas. Havia dormido um pouco mais de um hora e meia quando eu e minha esposa fomos acordados.
    A vizinha recorreu à minha sogra e ela nos chamou para levar o neto, pois o menino não parava de vomitar, dessa vizinha à casa dos pais em Maceió. Distante 180 quilômetros. 
    A uma e meia da manhã, eu ainda disse a Cida: "Queria ter dormido mais um pouquinho".
    Fazia pouco tempo que tínhamos comprado um Monza usado e detonado,  o que só saberia depois. 
    Um pouco depois da uma e meia da madrugada a gente estava na estrada,  cheio de adrenalina a nos tirar o sono.
     Entre quatro e quatro e meia da manhã a gente chegava na frente da casa dos pais do garoto. De lá fomos ao hospital,  o menino não tinha nada, só saudade. Perto de seis da manhã recusamos um convite para cochilar. Imaginei que às sete e meia estaríamos comendo cuscuz com leite em Bom Conselho. 
     Sonolento, com os vidros do carro abertos, iniciamos a volta.  Passamos por Satuba e começarmos a subir a ladeira que nos colocaria no planalto a caminho de Atalaia. Todas em Alagoas. 
    Nessa subida,  com reflexo zero, eu me assustei com uma Kombi que fez uma curva passando pela nossa pista. Com isso fiz um movimento brusco e perdi o controle carro, dei um cavalo de pau para não cair no barranco, o carro deslizou de lado e bateu na calha de água do acostamento.  Travou. O jeito foi pedir socorro ao pai do menino. Cida foi atrás, eu fiquei no carro.
     Com duas garrafas de água mineral e um pacote de bolacha fiquei na rodovia das seis da manhã até o meio-dia. Chegamos na casa do sogro às três da tarde.
     Para quem estava com apenas 27 anos,  acelerado,  naquela manhã recebi a maior aula de paciência até hoje. Nada a fazer,  vigiar o carro para não ser furtado e esperar o socorro. 
     Esse episódio voltou ao meu coração nesta semana ao conversar com minha mãe de 82 anos, ansiosa para ser vacinada. Uma ansiedade ainda maior do que a que lhe acompanha. 
      Sabe, fiquei pensando, pensando...
      Qual lição aquele acidente, do qual escapamos ilesos, pode nos ensinar hoje?


Semana Iluminada, repleta de bons augúrios.
Marconi Urquiza


      
    


     

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

A ASSINATURA DO CABRITO BODINHO

 

       Que bode desgramado,
         Que rebeldia foi aquela,
         Podia ter berrado!

     O cabrito foi batizado pelas crianças de Bodinho. Um dia um amigo da família vendo a alegria das crianças de Benício ao verem um bebê cabrito, prometeu a própria esposa que daria um presente a eles.
     Dois meses depois chegou o presente. Aquela família agora tinha seis membros, o casal, os filhos e Bodinho, que cresceu saudável e com muita alegria das crianças.
     Mas, uma viagem longa se avizinhava e dentro da casa começou a se discutir como ficaria o cabrito. Já haviam até conversado com o vizinho para ele alimentar e trocar a água do animal enquanto viajavam. Bodinho, ainda criança, corria solto, dando pinotes e nada sabia do seu destino.
     Era o bicho de estimação daqueles três meninos inquietos.
     Já faltando dois dias para a viagem, Benício chegou em casa e comunicou:
     - Olhe, Zé, o nosso vizinho, vai cuidar do cabrito até a gente voltar, - não foi surpresa para a esposa, isso havia sido combinado.
     Na hora daquela conversa Bodinho chegou na porta e viu os meninos agitados, cada um dizia que ele não poderia ficar no natal sozinho, tinha que ir com eles.
    Benício manteve a decisão que o cabrito ficaria, Carla também achava melhor que o animal não viajasse.
      - Olha, o nosso carro é apertado e nós vamos viajar um dia quase todo.
      - Não pai, a gente se aperta, – disse o mais velho.
     - É pai, a gente leva ele no colo, - disse o filho do meio.
      O mais novo só gesticulava apoiando a ideia dos seus irmãos que haviam encontrado a solução para ter Bodinho na viagem. Depois de muita conversa, os pais toparam. Mas Bodinho iria ser criado na fazenda da avó, pois ficaria grande e não daria para ele viver no quintal da casa onde moravam. Na hora as crianças aceitaram a decisão, a viagem com Bodinho já seria suficiente. Poderiam conviver com ele mais um tempo, pois estavam nas férias da escola.
     Na véspera da viagem arrumaram as bagagens e colocaram no carro. Uma garrafa PET de um litro foi transformada em uma mamadeira para Bodinho beber água, em uma caixa plástica estava a ração dele. O cocô e o xixi é que poderia ser o problema.
     No outro dia pela manhã Benício acordou preocupado, ao voltar da garagem, onde havia organizado melhor a bagagem, ele se aproximou da esposa e disse:
     - Já arrumei o carro. Sei não, vai ser uma viagem apertada. São 600 quilômetros.
     - Benício, se arrume para você dirigir confortável que a gente se acomoda.
      Viajaram três adultos e as três crianças pequenas, mais o cabrito. Todos eles em um Kadett.
     A sexta-feira chegou e Benício conseguiu ser liberado do trabalho mais cedo. Mas só chegou às duas da tarde, fez um almoço rápido e em meia começaria a viagem. A babá e os três meninos estavam acomodados no banco de trás do Kadett. O pequeno cabrito ocupava o colo dos dois meninos mais velhos, nos pés da mãe estava a caixa plástica com as mamadeiras do filho mais novo.
     Benício ligou o carro, olhou para o banco de trás e ficou preocupado. Carla também olhou, Bodinho estava quieto, retribuiu o olhar. Os três meninos estavam contentes, que em vez da agitação natural das crianças, elas estavam quietas. Depois dessa verificação, Benício olhou para a esposa e disse:
     - Vamos. Vamos ver o que é que vai dar, - Carla não comentou, tocou na mão do esposa e apertou de leve.
     Cidade pequena, em cinco minutos estavam na rodovia. Sol a pino, calor furioso e o ar-condicionado do carro soprando com força.
     Estrada estreita, com longos trechos cheios de buracos, o que tornou a viagem lenta. Já noite adentro ele chegaram em Patos, no sertão da Paraíba. Tinham deixado para trás 220 km, desde Caraúbas, no Rio Grande do Norte.
     Após a indicação de um frentista de um posto de combustível, na entrada da cidade, em pouco tempo eles estravam na frente do Hotel JK. Benício desceu pagou a hospedagem de dois quartos, um triplo para ele e a família, o outro, duplo, para a babá.
     Ele voltou e começou um conclave para saber como levar Bodinho para dentro do hotel sem que fosse notado. Mas Bodinho estava agitado. A tarde toda sem dar seu seus saltos o haviam deixado estressado. Comida e água para Bodinho na calçada, urinou por ali e as fezes foram recolhidas em um saco de papel, jogadas em um lixeiro próximo. Em cima do xixi, o que restava da água da garrafa PET.
     Benício entrou primeiro, o atendente levou as bagagens até o quarto triplo. Benício voltou e pegou o menino mais novo no colo, os maiores caminharam ao lado na mãe e Bodinho foi coberto em uma toalha de banho, como se fosse um bebê dormindo. Assim, meio disfarçado, ele entrou no hotel e foi para o quarto duplo junto com a babá.
     Dormiram antes das dez da noite, planejavam correr os outros 390 km lá pelas cinco da manhã. Quando deu quatro horas, Quitéria chegou no quarto do casal agitada:
     - Dona Carla, Dona Carla, acorda ...
     Carla abriu a porta, sonolenta:
     - O que foi Quitéria?
     - Venha, venha ver o que o cabrito fez.
     As duas saíram pelo corredor do hotel e entraram no quarto. Já primeiros passos Carla viu as fezes no animal forrando o chão. Abriu mais a porta e Bodinho olhou para elas. Parecia estar mais calmo, mas estava na verdade era cansaço por não ter dormido.
     Carla empurrou a porta completamente e ao ver:
     - Minha nossa senhora! Como é que ele fez isso? Você não percebeu?
     - Não, dormi logo que me deitei e quando me levantei para fazer xixi estava essa bagaceira.
    Carla olhou de novo para Bodinho, viu ele se chegar e roçar na perna dela.
    - Vamos juntar esse cocô em um saco plástico, empurra esse negócio com os pés e vamos embora agora mesmo! - E Carla saiu ligeira para acordar o marido e os filhos.
    Com a pressa que foi possível, quatro e meia da manhã eles saíram do Hotel JK. Agradeceram a atenção do sonolento guarda e deixaram para trás a assinatura de Bodinho.
     Subiram a serra de Teixeira atentos, o sol já estava clareando bem a estrada, os meninos dormiam, Quitéria estava atenta e Bodinho relaxado, dormia no colo das crianças.
     A viagem seguiu tranquila, perto do meio dia, a primeira viagem de Bodinho terminaria, em poucos minutos ele estaria alegre, saltitando na casa da avó dos meninos e fazendo a alegria deles.
      Já perto do final da viagem, avistando a Serra de Santa Teresinha, o destino a poucos quilômetros,  Carla passou a mão nos olhos, como se quisesse apagar as imagens que a sua  memória trouxe, então se virou para Benício e indagou:
      - Você viu o estrago?
      - Vi ligeiro.
      - Como é que ele fez aquilo tudo? - Perguntou de novo Carla.
      - Não sei. Como pode? - Benício estava incrédulo.
     Nem ela, nem Benício saberiam como. Até hoje, quando se lembram, se perguntam como é que Bodinho colocou no chão o reboco e esburacou toda a parede do banheiro.


Semana Iluminada. Falta pouco para a vacina, nos cuidemos.

Abração, Marconi Urquiza
 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Eu e o Banco do Brasil, 11/jan/1982

 

     Fazia tempo que eu esperava por uma segunda-feira, onze de janeiro. 11 do 01. 11-01. Hoje é uma segunda 11 de janeiro. Ter visto Dona Duda, aos 84 anos, nestes dias desencadeou estas lembranças. Dona Duda era dona do restaurante onde fazíamos a refeição em Afogados da Ingazeira.

    39 anos antes eu entrava, pela porta dos funcionários de antes do expediente, no Banco do Brasil de Afogados da Ingazeira, era um pouco antes das sete horas da manhã. Como um visitante ilustre eu era esperado, não por fama, mas por eu ser o último do concurso de 1981 ou quase, a tomar posse naquela agência.

Ao entrar um vigilante me recebeu, uma colega que não lembro o nome me indicou a mesa de Ronald Teixeira Cavalcante, gerente-adjunto, ainda de pé, ele me deu a carteirinha funcional e vaticinou: Decore este número, ele nunca mais vai sair de sua vida. Não saiu. 

Naquele mesmo dia eu recebia o primeiro talão do Cheque-Ouro, o mais potente Iphone dos produtos bancários daquela época, capaz das maiores distinções sociais. Dever o limite foi um visgo que levei cinco anos para me livrar. 

Naquele dia começou uma história, a da minha vida, que me permitiu ter um rumo, em muitos momentos uma causa para viver, um sentido para a vida, agregando valores que ainda hoje me movem, como ética, respeito pelo próximo, tratar o cliente com atenção e consideração (sob qualquer circunstância). A realidade mudou, o discurso de engrandecimento melhorou e a prática destes bons valores pioraram. 

Os melhores anos, pós 1996, foi quando como gerente eu me sentia especial, inventava coisas sadias para dar bons e sustentáveis resultados. Salvar o BB da falência ou da privatização era um sentindo de vida importante. Ter resultado virou o maior mantra, independente das práticas. Minha doce ilusão foi mudando. De 2002 em diante, era preciso se adaptar ao novo modelo, era preciso se reinventar, eu de tantas reinvenções me sentia agoniado, sem saber como me provocar constantemente tantas invenções. Mas eu não enxergava, as reinvenções estava no patamar do espirito, eu não sabia como agir, quebrando ou abandonando os meus valores (honestidade de princípio, atitudes éticas, vendas reais e por aí foi). Não quebrei e me quebrei.

Dia desses eu estava me lembrando da Ação do Fome Zero, aquilo correu o Brasil de cima a baixo. Lembro que em 1998 nos fizemos em Terra Boa (PR), quando as crianças começaram a chegar em um evento dos dias das crianças eu cunhei um termo que nunca esqueci: Fome escondida. Ali a fome era escondida, não escancarada como ocorria no Nordeste daquela época.

Teve um momento que minha esposa idealizou um São João, ela reuniu as crianças dos colegas, conseguiu carroças de burro, um lojista que tocava sanfona e forró se dispôs e correram a avenida Brasil em Terra Boa levando a bandeira do BB. Este e vários outros episódios foram feitos para tornar a imagem do BB simpáticas nas cidades.  Nessa época a imagem do BB era um torrão de madeira, queimadinha, bem queimadinha e eu era um dos artífices do novo Banco do Brasil. Eu me sentia especial.

Deixando as mágoas de lado, há toda uma história rica dentro da empresa, das pessoas que conheci, dos amigos que conquistei, do respeito dos clientes que obtive, das histórias divertidas que ouvi e que presenciei, das lições que aprendi. Dos risos que dei e alguns que provoquei. Do assalto que virou crônica e depois virou brincadeira.

Por ser essa segunda especial, uma marca na minha vida. 

Bom dia minha gente!!

Abração, Marconi


sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Gameização - E quando tudo é um jogo?




E quando tudo é um jogo.

Política é jogo?
Futebol é esporte e é jogo?
Estratégia é jogo?
Medição de desempenho é jogo?
Opinião pública é jogo? Quem joga com ela?
Algoritmo faz jogo? Quem é o pato?
Incitar fanáticos ou fanatizados, é jogo?

         Eu já havia iniciado esta crônica e nem imaginaria que iria haver uma exemplo mais pronto e mais recente para ilustrar a minha percepção: a invasão do Senado dos Estados Unidos, nesta quarta-feira, pelos apoiadores de Donald Trump, na tentativa de evitar a homologação da eleição de Joe Biden.

      Muitos anos atrás cansei de ouvir: "Seguir a regra do jogo". Era isso mesmo, quem jogava segundo tais regras tendia a ser vencedor, independente de qualquer ética envolvida e menos ainda de qualquer princípio moral. Nesse grande anfiteatro que é a política, necessária, execrada, mal vista, mal afamada, de muita gente que vai pelos interesses pessoais, das corporações, as quais defende. Corporações entendida como empresas, classes profissionais, religiosas, facções. Tem de quase tudo ou tudo. O baixo clero tenta sobreviver nessa gameização e os que mandam de fato, nem aparecem. Mas tem o alto clero, dotados de grande poder de decisão. Mas tudo é um grande game.

     E o povo em geral, fica, quando fica na arquibancada. Na gigantesca maioria, somos meros passageiros, à mercê de qualquer "motorista".  Tem várias pessoas que falam de espírito republicano, a quem interessa isto?

    Queremos o resultado, a sociedade deseja que a sua vida melhore. É por isso que a política existe, para equilibrar as forças. Mas não equilibra, os tais ideais republicanos somem no meio dessa gameização. Soa, para nós comuns, como um termo sem sentido, coisa de academia, de mestrado ou doutorado. Um termo que para virar prática e tornar a vida das pessoas melhores, tem que sair do ideal e ir para o dia a dia.

    Parece com uberização? Tem o mesmo sentido. É um neologismo.

    Tudo é um jogo. Há muito tempo. 

    E quando tudo é um jogo?

    Aí vem a propaganda, os algoritmo sendo usados para nos incutir e desperta os nossos sentimentos mais ruins, regressivos: como rancor, ódio, mal querença, insatisfação, barriga vazia, falta de oportunidade, frustração. A culpa é do outro. Criando um efervescência que nos impede de ver a manipulação. É jogo, quer aceitemos ou não. A maioria de nós é pato nesse game. Só entra para perder.

    Outro dia eu estava lendo sobre a corrupção em um livro sobre comportamento coletivo. Neste livro, já no final, o autor* se expressa mais ou menos assim: Aí vem o sistema e oferece uma vantagem, a pessoa recusa. Vem outro dia, e oferece outra vantagem. Muda o canto e abre uma brecha para a pessoa aceitar. Mais uma vez há a recusa. O sistema desta vez mistura o doce com o amargo, mistura a vantagem com uma perda. Ganho e perda no mesmo prato. Aí, a resistência é quebrada. A pessoa aceita ser Serva do sistema. Quem é o sistema? Melhor, o que é o sistema?

    Pensou nisso: Quem é o sistema? O que é o sistema?

    Vale para qualquer circunstância da vida em uma sociedade organizada. Muitas vezes, mesmo sem querer, as pessoas se transformam em "bois de piranha". O bode expiatório, o besta que se fode. É jogo.

    Ruim é reconhecer que viramos peão do jogo do outro. Quando cremos, piamente, que fizemos o melhor e apenas somos uma mera engrenagem. Terrível.

    Às vezes, muitas, na verdade, nada se pode fazer isoladamente, por isso ter sindicatos fortes, entidades da sociedade civil fortes, ONG fortes, movimentos civis atuantes. A questão esbarra, que para isso ocorrer se precisa de recurso. Estrangule a fonte de dinheiro e tudo isso se enfraquece. Não é a toa que a força policial vai em cima dos recursos das gangues internacionais, é para matá-las por falta de dinheiro.  Por exemplo: o Imposto Sindical tinha muito mal uso, e agora? Alguém já ponderou o que vem ocorrendo com a defesa sindical para as categorias profissionais?

    Todas foram cooptadas por não terem fonte de receitas. Os trabalhadores do Brasil não aderem fácil às entidades de classe. É uma realidade a se tentar alterar.

    Isto que ocorreu, esse sufocamento financeiro, não foi uma jogada magistral?

    É importante entender e se perguntar constantemente: A quem interessa algo que aparece na redes sociais, mídias, na boca das pessoas? Quem vai ganhar com isso? A quem interessa o incitamento que ocorreu nos Estados Unidos? A quem interessa incitar comportamento radicais?

   Feito isto, vamos viver. 

   Semana Iluminada.


(*)

        Autor: Philip Zumbardo. 





O poder revela ou transforma uma pessoa?

  imagem: Orlando/UOL.            Um papo na última segunda-feira entre aposentados do Banco do Brasil que tiveram poder concedido pela empr...