quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

RETROSPECTIVA SENSORIAL



                                            Poema de Ademar Rafael Ferreira
      Mesmo com dores terríveis
       No joelho, punho e mão
       Com insônia que perturba
       A mente e o coração.
       Sei que após a tempestade
       Dias melhores virão.

       Que é isso de sensorial? 
       Na falta de uma palavra no vocabulário e da preguiça em consultar dicionários eu deixei assim mesmo. Nos acostumamos ver na tevê programas de retrospectivas,  em um ano em que a sociedade brasileira andou de braço dado com a teimosia e com a morte, muitas evitáveis. 

       Pois bem, cabe a cada um fazer a sua. Eu compartilho a minha.

      Começo pelo Medo.  Como senti! Aquele medo raiz, ancestral. Mas em vez de ter correr para se salvar, a salvação foi ficar parado.  Em casa. 

       Veio a insegurança. E o futuro? Qual o sentido de vida para quem está com 61 anos. Achá-lo, transformar em objetivo e agir. Felizmente estava em andamento a liberação da escrita como razão de viver. Falta-me ser lido. De março para dezembro escrevi 100 páginas de um romance.  Escrevi 48 contos e umas 30 crônicas, totalizando mais 300 páginas. Tudo organizado,  são três livros. 

      Mas aí veio o sufoco, um filho entrou na fila do desemprego.  O futuro dos meus filhos são o meu. Eles estando bem,  eu consigo levar a vida.

     A insegurança veio forte. Era hora de evitar que a sanidade mental virasse insanidade. Após  três anos, eu era quase um rato de academia.  Frequência de três a quatro vezes por semana. O físico em setembro estava definhando.  Depois  de mais um ano sem sentir as dores da artrose,  eu voltei a tê-las.

     Olhava o mundo pelo quadrado da janela, isto esgotou. Já não era suficiente.  Comecei a me refugiar na leitura das mensagens boas, o ruim me dava mal-estar. Fugia na irrealidade do mundo perfeito. Recusei o voluntariado para escrever o obituário dos mortos pela pandemia. Escapou uma, a do primo Ronaldo Tenório. 

      Em setembro estourei às costas,  machuquei o joelho direito, o punho começou a doer, a insônia se tornou péssima.  O corpo reclamava...  Não,  a vida reclamava. 

     Contrariando o senso comum,  criei os melhores contos,  resgatei por meio da fantasia imagens que andava, sei lá onde. Um passarinho que entrou na casa, o vento que se tornou personagem. A empregada que tem o mesmo odor corporal da patroa e por aí fui. Havia escrito dois romances, neles a vida é crua. Nos contos a escrita é bem diferente das dos romances, a leveza é a marca. Era de leveza que eu precisava.

     Passei a olhar o Mundo pelo Cuidado e pela Liberdade Provisória. Sabe, qualquer descuido,  podemos estar mortos em pouco tempo ou podemos ser assassinos, sem sabermos. O cuidado é mais que uma faceta da nossa vida mundana. A liberdade é vigiada pelo vírus.  

     Antes aprendi olhando,  atendendo , sendo um ouvido atento e respeitoso para os clientes, alguns doentes, vários terminais, especialmente os que chegavam na agência do Banco do Brasil,  Agamenon Magalhães,  em Recife.  Aqueles anos me deram um sentido de vida canino, em uma carreira que havia entrado no ocaso. Saí dos anos em que lá estive ciente que ser empático depende de um esforço permanente, fabulosamente gratificante. "O simples usar da máscara pode ter o mesmo sentido". Redescobri isto em 2020.

Que nos encontremos em 2021!




Feliz o AnoNovo, Iluminado como nunca.
Recife, 31/dez/2020

Marconi Urquiza 




sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

O NATAL DO MENINO QUE CORRIA COMO SE ANDASSE



Poema de Ademar Rafael Ferreira


       Ele atravessava a rua
       E a praça feito bala
       Entrava no quarto escuro
       Passando rápido na sala.


       Pra mexer com marimbondo
       Nunca lhe faltava gás
       Pra caçar dentro do mato
       Ele tinha um pé atrás.

       Com suas pernas de garça
       Corria como se andasse
       As “perninhas de abelha”
       Não tinha quem
       Aquietasse.
 
       O natal do menino buliçoso começava quando a prefeitura esticava os fios das lâmpadas no quadrado da praça. Esse era o sinal que as festas estavam perto.
       Na sua casa, a iluminação simples do natal na cidade era o início para se organizar o da família. O peru gordo já estava encomendado, a árvore de natal desencaixada, os enfeites limpos e pendurados na portas. Na virada para o mês de natal a corrida para Garanhuns. Era hora de comprar as roupas novas.
       Toda noite ele descia para a rua, ia olhar as poucas barracas com jogos, a roleta de ficha e a barraca de tiro ao alvo, tiro que nunca acertava.
       O Natal ia chegando, as casas das ruas se enfeitando como podiam. O menino gostava de correr as ruas de perto e olhar as casas com as suas árvores de Natal acesas. Parava numa casa, geralmente de porta aberta para as pessoas da rua as verem. Trinta segundos, olhava, corria para a outra, mais trinta segundos ou quanto o tempo a timidez permitisse.
      Era tempo de brilho na costumeira escuridão da cidade. Quando estava parado na pequena praça, perto da praça grande os seus olhos se enchiam da luz das lâmpadas amarelas incandescentes.
      Naquele ano a prefeitura criou um presépio e o colocou no meio da fonte da praça da matriz. O menino agitado, era como se tivesse uma bateria extra, parecia não gostar de andar, corria como se andasse. Como se tivesse pressa para tudo. Era a energia extra deixando-o elétrico.
      Em um final de tarde ele parou perto do presépio da praça grande e ficou olhando os bonecos. Viu o jumentinho, não gostou dos olhos pidões do Menino Jesus e prometeu que no dia de Natal, com a cidade toda dormindo, ele entraria na fonte para alisar a estrela grande.
     Promessa feita, olhou para o céu e esticou a mão para uma estrela que pulsava forte. Tá longe. Deu dois pulos e saiu correndo, atravessou a rua na diagonal e parou perto da calçada. Deu um giro sobre o corpo e olhou tudo ao redor. Cada casinha, cada comércio, a imensa igreja. Tudo estava iluminado.
       Se voltou para a calçada e olhou a casa à sua frente. A varanda estava às escuras, não tinha enfeite, as portas cerradas e a árvore de natal não havia sido montada. A casa do coronel estava triste.
       Pisando devagar desceu mais alguns metros e subiu a calçada da casa do seu padrinho, esticou o pescoço e ficou na ponta dos pés para ver o corredor da rica casa, estava doidinho para entrar, mas não tinha intimidade.
       Nisso viu o seu pai subir a rua, dirigindo devagar a Ford Rural verde e branca. Era hora do jantar. Correu e quando o seu pai entrava na casa, ainda da calçada da casa vizinha, ele gritou:
       - Pai?
       - Já tomou banho?
       - Não.
       - Vá logo, que hoje é natal.
      O menino correu dentro da casa, quase tromba em Maria Preta, escorregou na entrada do quarto, a prima Fina encostou e soprou no seu ouvido:
       - Vai logo, se não, você perde a vez. Agora de noite tem muita gente para tomar banho.
       Era Natal e só tinha um banheiro com água morna na casa.
       O menino deu meia volta, correu para o quintal pegou a sua toalha, arrastou uma cueca do varal e voando entrou no banheiro. Saiu dele na mesma ligeireza que havia entrado. Ali perto, Maria Preta arrumava a mesa para a ceia do natal, quando seu rosto surgiu na porta, ela avisou:
       - Cuidado menino, tem prato quente!
 
       Não gostava de andar
       Pra correr era dotado
       Só mesmo muito doente
       É que ficava parado.

      Tinha turbina nas pernas
       Igual asas de avião
       Por sempre viver correndo
       Sempre chamava atenção.

      Com suas pernas de garça
      Corria como se andasse
      As “perninhas de abelha”
      Não tinha quem
      Aquietasse.

      Só um pouquinho devagar, andou como corresse, chegou na porta do seu quarto e estancou. Viu sobre a cama o seu traje completo: calça curta, camisa xadrez e as meias. Esticou os olhos e viu perto da cabeceira da cama o brilho dos sapatos e o cinto enroladinho dentro do pé direito. Paralisado, toda a sua agitação cessou, a prima Fina encostou mais uma vez:
- Vai logo, já então todos na mesa. Só falta você.



Feliz Natal,
Ano Novo Iluminado.

Marconi Urquiza

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                  "A imensa igreja"

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A praça Dom Pedro II, em Bom Conselho, no tempo 
narrado pela crônica.




sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

2020, ano da empatia?

      
      Tentei mandar a um amigo 
      A paz, amor e alegria.
      Com afagos e presentes
      Eu gastei muita energia. 
      Reformei minha atitude,
      Vi o trio em plenitude, 
      Quando mandei EMPATIA.
         (Ademar Rafael Ferreira)

     Em 2020 a empatia surgiu muito forte.  Muita gente tornou ela um valor a lhe dar sentido às suas vidas. 
      Mas tem gente que destoa ou não se importa em praticá-la. Isto se revela ao se aglomerar, não usar as máscaras, entre outros comportamentos egoístas. 
      Nesta semana, ao ler parte do discurso do ministro da saúde, vi que ele reclamou da ansiedade pela vacinação.
      Será que ele sabe o que é isso? O que sentiu ao ficar na UTI? Foi só medo?
      Tem fala, que de tão transformada em uma coisa, não toca, passa como um vento imperceptível. Nada contribui.
       Que humano foi esse que escreveu aquele discurso? Cheio de certezas e zero de empatia.
       Muito tempo atrás em uma aula, um professor convidado veio palestrar, comentava pormenores de sua pesquisa para a tese de doutorado.  Essa pesquisa envolvia líderes ativos e líderes aposentados da igreja católica. 
      Um aspecto chamou a atenção nessa palestra: a forma como os entrevistados respondiam às perguntas.
      Os líderes da ativa,  segundo o palestrante, falavam chavões o tempo inteiro do discurso institucional. A pose, às vezes, era magnâmica. Ali estava o CNPJ encarnado em um indivíduo,  que respondia, sem responder. 
     No outro grupo de entrevistados, estavam os ex-líderes, agora aposentados.  Disse o professor que alguns deles, sem as vestes do cargo, eram capazes de dizer: "Senta aqui filho! Fique à vontade e muita vezes se sentavam no mesmo sofá". As respostas dessas pessoas, eram, na maior parte,  precisas e diretas. Até empáticas.
      Olhando o discurso do general Pazuello, veio à mente os discursos corporativos escutados ao longo de  vários anos. Palavras bonitas,  às vezes de ânimo, frequentemente vazias de sentimentos. 
     Quando se conhece a dor de uma família com um doente de covid, quando se dá de cara com o médico angustiado ou quando ouvimos um muito obrigado, o sentimento costuma ser o mesmo: de empatia. 
    Empatia, só isso muitas vezes basta.

 2021, Ano Super Empático.
Abração, 
Marconi Urquiza

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

2020, um ano impossível?

 

2020, Um Ano Impossível?

     Nesta semana foi a maior comemoração do ano, 100 anos de Clarice Lispector. Tanta coisa foi dita, tantas lives e citações nesta semana foram feitas. Imagens e  mais imagens dos seus livros e dela mesma. Pelo menos para mim esse excesso de menções não deu-me o efeito de enjoo.

     Estava a procura de um assunto quando li no Instagram a frase de Clarice. Vou repeti-la:

     O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós. 

     Foi como estar dentro de um ônibus quando o motorista dá uma freada brusca e nos pega desprevenidos, nos jogando para trás e a para frente sem tenhamos como controlar os nossos movimentos. É quase uma topada que nos joga na calçada.    

    Quem já não fez coisas que classificou de impossível?  

    A frase de Clarice Lispector foi um link sem filtros para uma realidade que não recordava mais e que ao reler, depois de dezessete anos, me senti perplexo. Uma perplexidade pelo uso da palavra impossível, ainda mais por sentir o que o havia escrito teve dimensão histórica de uma superação de dificuldade que era um contraponto a todo que é organizado, o caos. É que falei aos colegas do Banco do Brasil em Surubim, naquele ano da graça de 2003, naquele mês de agosto, que dada as circunstâncias de metas muito elevadas e condições de trabalho péssimas, estaríamos, à partir daquele dia, No Exercício do Impossível

     Juro que foi um choque reler. Uma reflexão profunda se seguiu, anos passaram por minha mente tentando achar que tudo valeu a pena. 

     Aí chegamos em 2020. O Medo, a Angústia, a Incerteza, O Olhar o Mundo pelo Quadrado da Janela. Um ano impossível. Impossível de muito modos. Do geral para o individual, do medo extremo para a imprudência deslavada. Do choque e da dor não reconhecida nos outros, apenas em nós, quando o egoísmo abriu às portas para a desgraça.

     Um ano impossível, onde milhares de cientistas não estão concorrendo entre si de forma predatória, onde empresas que querem a vacina primeiro, não estão boicotando que outras façam as suas. Um ano impossível no Brasil, com a sensação de que poderia ter sido diferente. Poderia mesmo?

     Muito tempo atrás, um personagem, que era tido como medroso, dizia quando lhe pediam o que a norma não amparava no Banco do Brasil: Olha, eu sou temente a Deus. Esse era o seu limite. O que ainda se vê nesse 2020, ainda sem vacina, é que tem muito adulto que teima. A teimosia insana, daquela que dizia o cantor Bezerra da Silva na canção Malandro Demais vira Bicho, ao se referir para uma pessoa ter limites, que o cara vai ser pego e se ferrar.

      Um ano impossível, um vírus, cujo efeito é carnal, doído, daqueles que provoca o arrependimento, talvez até, daqueles que mata pela culpa sem controle. Tenho convicção, que não tem estatística que simplifique, quando a desgraça se abate sobre nós.

      Um ano que criou em milhões de pessoas uma urgência de viver quase paranoica, uma disciplina que não queria ter, uma criatividade quase sem fim para dar conta da sanidade mental, um exercício de paciência jamais experimentado por muita gente, uma fome de viver jamais percebida, um certo sentimento de dor e amor, como os dois braços fazendo uma cadeirinha para orarmos por alguém prestes a morrer. Um medo visceral, dias a fio.

      Aí veio Clarice Lispector a nos provoca à reflexão. E se sua afirmação fosse uma pergunta?  O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós? 

      Eu não tenho resposta.  E vocês?

     

     Abração.
     Semana Iluminada,  Marconi Urquiza

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O menino invisível

 

     Se um menino traquina
     Aos pais ele não responde
     Se entoca num lugar
     Que só ele sabe onde.
     Numa rapidez incrível
     Se transforma em invisível
     No lugar onde se esconde.

                  Ademar Rafael Ferreira


Naquele dia, ao acordar, o menino da canela fina, magro e comprido para os seus nove anos ganhou a rua, mas parou na calçada da sua casa. Achou tudo diferente. Muita gente parada perto da igreja, na rua, no calçamento, onde à noite ele e os amigos faziam de campo de futebol.

Preocupado, andou até a casa do seu avô, entrou e ficou conversando com a sua avó. Não lembra ter visto o vovô, que naqueles tempos andava trabalhando como fiscal temporário do agronegócio do Banco do Brasil.

No meio daquela conversa,  a sua avó serviu o cuscuz, feito de milho com uma pitada de goma de mandioca. Cuscuz ligadinho. Colocou um pouco de leite e ensopou com o molho do bife de caçarola. Comeu com gosto e beliscou a xícara de café. Achou forte e mesmo atolando o açúcar, o menino não bebeu. Se levantou quando a empregada recolheu o prato e em seguida ouviu:

- Venha meio-dia, que o seu avô vai trazer aquele doce de leite que você gosta.

- Posso almoçar aqui?

- Pode, avise a seu pai.

- Tá certo, vovó.

- Vou em casa pegar as minhas coisas para ir a aula de dona Maria do Carmo.

- Acho que hoje não vai ter aula.

O menino não entendeu esta última frase, deu a benção à avó e saiu correndo pela casa até a calçada, nela parou de novo. A multidão tinha crescido. As escadarias da igreja matriz estavam lotadas. Muita gente sentada à sombra.

O menino andou mais um pouco. Viu que a praça também estava repleta de adultos. Caminhando lento, ele foi ficando invisível diante daquelas pessoas. Com cuidado, de menino que andava sobre muros, ele caminhou. Cinco passos, uma parada. Avaliava o terreno e voltava a andar. Foi assim que chegou na frente do bangalô branco, alpendrado do lado direito, com frisos dourado correndo toda a casa.

Na calçada olhou para cima, para o alpendre e viu os adultos, muitos da idade do seu pai ou do seu avô, sentados na varanda. Não conversavam. Estranhou,  ele costumava ver esses homens falando livremente. 

Tudo ao redor era silêncio. Ele não lembrava direito, mas olhou para a parte de baixo da praça e viu as portas dos comércios arriadas até a metade. Captou a anomalia, mas não soube interpretar.

Ele sentia que alguma coisa estava ocorrendo. Aproveitando que estava invisível para a multidão, o menino de canelas magras esticou os braços e pegou no parapeito do janelão, puxou o corpo e pisou na beirada pequena que tinha na metade da parede. Apoiado precariamente, olhou para dentro do quarto e ficou vendo o que se passava.

Viu um homem deitado de pijama, uma mulher vestida de preto sentada ao lado dele. O homem respirava com dificuldade, puxava muito ar. O menino via e não compreendia. Quando o homem deu a última suspirada e se aquietou, a mulher se levantou, cruzou as mãos dele e saiu do quarto.

Ainda pendurado sobre o parapeito da janela, o menino ouviu um grito e da escada desceu um homem correndo, muito emocionado.

Ainda invisível, o menino desceu da janela e foi procurar uma sombra. Lá ficou observando todo o movimento. Vários minutos depois, o homem que havia saído muito emocionado voltou, ainda muito nervoso e em seguida entraram outros homens com um ataúde.

Depois de um tempo, sentado entre os adultos, ele viu o avô chegar na calçada do bangalô. Ele atravessou a rua e encostou nele, recebeu um afago e ouviu:

- Vá para casa, aqui vai encher de gente, - o menino ainda olhou ao redor na busca de um amigo para brincar e recebeu um tapinha leve, lhe chamando a atenção e em seguida o avô falou de novo: - Vá, o coronel morreu.


Semana Iluminada

Marconi Urquiza

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

FELICIDADE CLANDESTINA - Clarice Lispector


 

         Eu me preparei para escrever um conto e não uma crônica. Ando sem inspiração para crônicas, acho que a minha vibe nesse momento é escrever contos. Neles posso sonhar, voar, navegar, misturar real com a fantasia, inventar tudo. Para hoje eu escrevi, até escrevi um: A Assinatura do Cabrito Bodinho.

     No correr de ontem fiquei na maior indecisão e terminei por escolher um conto de Clarice Lispector. UM CONTO FANTÁSTICO. É também minha homenagem aos 100 anos de nascimento de Clarice. Além disso, é um conto que me identifico profundamente, tanto pelo objeto desejado, quanto por me fazer lembrar que a felicidade pode estar nas coisas simples.

FELICIDADE CLANDESTINA - Clarice Lispector (Do livro: Felicidade Clandestina - Ed. Rocco)

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


Semana Iluminada.
Marconi Urquiza

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Tá com medo do que cara-pálida?


Estas palavras são fruto da minha indignação, apenas isso. 
Você não precisa concordar com elas.

     Você tá com medo do que cara pálida? Éramos desse modo apresentado aos desafios profissionais por um dos meus chefes. Era um chamado aos nossos brios, afora outras expressões que nos instigava à superação das metas. Era força de um Super Homem, a coragem e a estratégia de um Homem de Ferro e a vaidade de um anti-herói como Lampião, tudo junto em cada um dos ouvintes.

     Aqui e acolá, alguém, nas rodas miúdas, escorregava em alguma vírgula misógina, um ponto e vírgula homofóbico. Mas nada tão agressivo e generalizado como nos tempos atuais. Nesses dias voou a palavra boiola, planou a maricas. Mais do mesmo, o discurso de uma verve dirigida. Boiola para um nordestino, maricas para um paulista.

     Ambas as palavras para estimular o viés machista, do macho mau, valente e que se fizer bobagem pode ouvir em resposta: o que você fez é problema seu. Em outras palavras: foda-se sozinho. Aí quando alguém, que foi estimulado por tais arroubos retóricos, se encontrar em algum tribunal judicial vai se lembrar que deveria ter sido cauteloso, respeitoso.

     É tudo Coronavírus, agora é tudo Coronavírus! É quase, nem tudo. Mas em 2020 ele é o líder mais importante do mundo. É o maior ditador de todos os tempos, é o maior bandido de todas as épocas, é indutor de comportamentos, para o bem ou para o mal. Quem vai para o bem tem chance de sofrer menos, que vai para o mal, tem a chance de se transformar em um defunto, em um doente crônico. Padecer sob mil angústias por não ter sido prudente.

     Se maricas significa ser cauteloso, eu sou; se maricas significa ser temeroso com a própria vida, eu dobro. Se maricas significa respeito a uma força na natureza, por hora, indomável, eu prefiro curtir a vida que me foi concedida.


Abração. 
Semana Iluminada.

Marconi Urquiza

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Poesia no blog

Este é o mote:
Eu vi a lua morrendo
Numa agonia de prata.



Lourival Batista  ---------   Jó Patriota

Quando a gente viaja para reencontrar amigos tem toda a expectativa que vai ser uma festa, que teremos alegria e que os bons sentimentos chegarão, mas o Encontro dos ex-funcionários do Banco do Brasil de Afogados da Ingazeira (PE), em três de fevereiro deste ano, foi além da expectativa. 

Bem, a festa começou a rolar, conhecidos foram chegando, lá pelas tantas chegou  um amigo, conversamos um pouco. Contamos em resumo as nossas histórias. A cada encontro era uma pequena biografia. Tudo muito gostoso, alguma saudade passando por nossas veias e a alegria de rever tantos amigos, depois de anos. Amigos que não via a mais de  quinze, vinte e até trinta anos.

Dias antes, Zé Carlos Bode havia me convidado para participar do grupo de Whatsapp Dona Duda. Que foi quase uma mãe para os funcionários do Bando do Brasil que passaram por Afogados da Ingazeira nos anos 1970 e 1980. Dona Duda, dona de um restaurante, era almoço e janta, menos no domingo.

Por meio desse grupo comecei a ver as postagens de poemas, declamações filmadas e Ademar Rafael foi colocando as suas criações, Izac acompanhando e eu e os outros amigos apreciando. E essa fonte de musicalidade só aumentou durante a quarentena. Muitas e belas.

Mas nesta semana entrou no páreo dos poetas o Ronald Teixeira Cavalcante, o Rona Bancaro, cidadão honorário de São José do Egito (PE), amante da rima e cria de Viçosa, nas Alagoas. Foi o primeiro leitor a me falar dos escritores clássicos russos, os quais me apresentou nominalmente e eu, por incapacidade de leitura, nunca os li.

O que ocorreu não adianta eu descrever, melhor mostrar. Mas tem um detalhe. Leia, leia, releia e então dê velocidade, mais ou menos como nestes áudios:



Aí me lembrei da minha resposta ao poema de Ademar, que reproduzo abaixo:

Ronald inspirado completou:


Mas Ronald estava aceso e escreveu isto que a gente vai degustar agora:


Então Ronald me pediu para passar esse MOTE, de Jó Patriota para Ademar (Rafael Ferreira): 

EU VI A LUA MORRENDO
NUMA AGONIA DE PRATA.

É hora de apreciar esse desafio:


Ronald voltou para complementar:

Sabem, quando eu pude compreender o que tinha no celular, eu parei e pensei: daqui a pouco eu esqueço dessas obras de sensibilidade e musicalidade e as apago, aí decidi, "Vou não ..." Agora é para todos.

"Vou não ..." Agora é para todos!!

Abração, Semana Iluminada.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Almoço de graça?

O QUE LHE ATRAI NESTE ANÚNCIO?

Há muitas pessoas que são altruístas, outras que compartilham quando estimuladas, várias quando algum fator interno se move e a pessoa começa a desejar dividir o que crer ser o melhor de si. De certo modo isto ocorreu comigo. 

Quando em completei 25 anos de trabalho comecei a imaginar, o que vou fazer com toda essa experiência, morrer comigo? Foi um período de muita reflexão. Eu pensava como levar parte disto para meus filhos, compartilhar com eles um pedaço dessa vivência e dar-lhes alguma coisa que os fizesse amadurecer mais cedo. 

Também comecei no trabalho a tentar compartilhar o que sabia, alguma cultura pessoal e, principalmente, da cultura da empresa para meus colegas. Algumas vezes eu ficava imaginando que a gestão de conhecimentos que a empresa fazia apenas captava o que se sabia pelos canais oficiais, o que corria de vivência pelos corredores, papos informais que viralizavam, não chegava a esse núcleo gestor.  Hoje, penso, que foi por causa das deficiências da comunicação, no processo e não dos meios, dos filtros cognitivos, do comportamento que se revelava arrogante, de se achar dominavam este saber, ou de algum modo pela ânsia de influenciar e sobretudo pela incapacidade de ouvir e sentir. Tudo isto, entre muitos outros aspectos, que diminuíam a captação da experiência real no trabalho. 

Nesse intuito, de fazer certas experiências ganharem maior repetição, nos termos de hoje, viralizarem, eu vi vários falsos esforços em compartilhar experiências bem sucedidas, digo falsas, por que o que era transmitido apenas tocava na parte final, o resultado "fenomenal", sem trazer o contexto, tão importante para uma adaptação por outros profissionais a situações reais de trabalho.

Com o passar do tempo compreendi que era para ser apenas isso, dizer, por meio subliminar, que aquele sucesso deveria ser seguido, que todo mundo deve trazer os mesmos "números",  e, infelizmente, como isto deu vazão aos "milagres de desempenho". Como deu vazão a rios cheios de falsos números. Mas quem se importava? Este perfil estrito tem similaridade com o que se vê na internet nos dias atuais.

Saindo desse mundo restrito e caindo em um, em que a tecnologia vai desempregando com a velocidade de um carro de fórmula 1 e vai jogando levas de pessoas que viverão com renda menores, subempregados, trabalhos avulsos e que provocarão na economia uma concentração de vendas de produtos mais elaborados para um grupo cada vez menor de pessoas. Não vou me aprofundar nisso, mas para amenizar, ajustar e oferecer alternativas, que o capitalismo voltado para si mesmo não consegue, precisamos do Estado.

Pegando o gancho sobre este curto parágrafo em que citei a tecnologia. Pois bem, por interesse, curiosidade e desejo de conhecer mais, eu comecei a estudar sobre uma face específica que a tecnologia da informação dispõe: o marketing digital. Há muita gente compartilhando o que sabem. Há todo tipo de perfis, os genuínos em ajudar, outros para ganharem a simpatia e reconhecimento, muitos apenas para experimentar e há, os negociantes, os profissionais.

A razão desse interesse foi, após concluir um livro, a preocupação em ter leitores. Era como se fosse uma vacina para a frustração dessa perspectiva de não ser lido. Em uma visão otimista, ter 1000 leitores; sendo realista, 100; no desejo megalomaníaco, 10.000. 

Por causa disso comecei a tatear, nos primeiros trinta dias o esforço foi em vão, pois eu não sabia o que procurar. Fiz um curso, Textos que Vendem Livro, depois fiz outro que tratava do Storytelling, achei um curso no Senac, também EAD, mas ao vivo e à partir daí eu comecei a ter um direcionamento. Comecei a transformar uma picada em um caminho, agora estou tentando chegar na rodovia.

Por exemplo: CANVA (www.canva.com.br) é uma plataforma de compartilhamento de criações - parte gratuita, parte paga - para Facebook, Instagram, anúncios, blogs e toda gama de veículos onde as pessoas podem se apresentar nesse mundo digital. 

Se houver necessidade, tem muita gente que divulga seus trabalhos de graça, outros que "monetizam". Isto é: se o que a pessoa postar tiver seguidores e audiência, ela pode ganhar com isto. Não são remunerados de imediato, primeiro compartilham centenas de vezes. Até tem muita coisa útil, mas há também armadilhas. 

Nessa busca para aprender como dizer e ser ouvido: "Olhe, sou escritor, meu nome é Marconi e meu livro é tal!". Nessa tentativa, no início de setembro ocorreu comigo uma habilidosa indução e só não tive a despesa porque o cartão bloqueou a minha compra de um curso. Importante, só vi depois que ele não serviria para os meus objetivos. O que aconteceu foi que eu entrei  para ver uma série de lives sob o título Maratona do Escritor (*).  Nelas uma consultora do mercado editorial e de marketing pessoal falaria de graça como poderíamos vender nossos livros, sermos um escritor de sucesso. 

Quatro noites. Na primeira, bom conteúdo, da segunda em diante a argumentação mudou e o conteúdo que interessava foi sendo cada menos oferecido, até que no final do quarto dia!!! Booom!!! Estava caído em uma espécie de armadilha. Estes quatros dias haviam criado em mim um desejo imenso de ser bem sucedido e o toque final para isto era comprar o treinamento, que começou a ser citado já no segundo dia e que finalmente foi oferecido, com desconto, no final do quarto dia. Tudo isto depois de criar uma expectativa crescente em todo o período. Tudo muito inteligente, bem aplicado e bem articulado.

No dia seguinte, não ocorreu a comum frustração de se achar que foi convencido a uma compra que não atenderia à necessidade. Bem, só o acaso não me fez comprar o curso e à partir daí eu comecei a pensar que é preciso conhecer melhor o que rola na internet e ter algum foco específico nesse mundo das redes sociais e seus negócios agregados, para não gastar os recursos de modo ineficaz. Isto ocorreu comigo em outras circunstâncias, agora estou usando essa experiência para quando eu tiver certeza do caminho a ser trilhado e poder empregar bem a minha grana curta. 

O marketing digital e os negócios da internet em geral pode ser um caminho para curiosos, mas não um caminho para amadores, pois o curioso vai achar o que deseja, o amador vai cair na mão de espertos experts, que usam as nossas próprias carências e deficiências para nos induzir a uma decisão que tende a não agregar tudo que desejamos ou, nada agrega.

Lembrou do anúncio no início da crônica? 


Abração, Semana Iluminada.
Marconi Urquiza




Sobre imagem de abertura. Criei no www.canva.com.br especialmente para esta crônica.








Veja este vídeo:
Narração de uma processo enganador, leia os comentários no link abaixo:

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

A MÁSCARA, será?

 

Preste atenção nos olhos das pessoas acima, quando terminar a leitura volte a observá-los.

Eu não sei se você é dado a prestar atenção no mundo, naquelas coisas que de tão corriqueiras não chamam mais a nossa atenção. 

Penso que a máscara agora não é mais estranha, ninguém olha mais para o outro com estranhamento, acho que se estranha quando vemos alguém não utilizando a sua, na realidade recifense. 

Pois bem, um amigo sugeriu escrever a respeito. Para não cometer a suprema indelicadeza para quem sugeriu o tema, não vou chutar o nome, mas agradeço de antemão. 

Bem, quando recebi a sugestão de olhar as pessoas mascaradas eu demorei iniciar a observação, tanto rememorando os encontros pessoais, quanto nos encontros nos quais passei a ter mais atenção.

Então no começo dessa semana eu me lembrei da sugestão e comecei a prestar atenção nas pessoas usando máscaras.

Deixa ver meus pontos de observação, somando-se os casos de memória ao desta semana: Lava-jato, duas vezes; supermercado, duas vezes; academia, quatro vezes; farmácia, uma vez; clínicas e laboratórios, quatro vezes; fisioterapia, quatro vezes. Andar na rua, dezesseis vezes. 

Voltei a fazer os exames de rotina, que estiveram retidos. São nesses ambientes onde ocorrem as maiores concentrações de pessoas, em termos de proximidade e de circulação de ar. Quase todos os locais foram projetados para ter ar condicionado, então a circulação do ar natural é bem restrita.

Um mês atrás, creio que no sabor da sugestão recebida, ao acordar, veio-me a ideia de escrever um conto, mas um conto a gente inventa uma situação. Observar a realidade dá mais trabalho, exige mais sensibilidade e saber o que se quer buscar. No nosso caso, os olhos, já que grande parte do rosto está coberta pela máscara. Como se sabe, o corpo fala, ele é tão expressivo quanto a voz, quanto os olhos. No meu caso, é mais difícil observar os sinais do corpo, alguns são mais fáceis, por exemplo: notar uma pessoa tensa, mas de modo geral não capto bem as suas mensagens.

Por um desses apertos da vida, eu comecei a prestar muita atenção nos olhos e nas expressões faciais das pessoas com as quais eu conversava. Hábito que se reduziu quando me aposentei, perdi muito da minha acuidade. 

A máscara, essa nova indumentária para o brasileiro, que se somou, neste momento, aos demais itens que vestem o corpo.

A diversidade de cores, modelos, tecidos, a variedade de máscaras é enorme. Tem gente que não faz a higienização das suas, vão acumulando. Algumas cores, as escuras, permitem à pessoa repetir o uso várias vezes, pois a sujeira demora a aparecer, quebrando o princípio fundamental para o uso de uma: a proteção; também pela higiene da mesma.

Algumas pessoas começaram a combinar as máscaras com as roupas, com a maquiagem, com o penteado, transformando-a em item de moda. Isso é muito legal, se vier acompanhado do cuidado com a sua higiene.

Várias pessoas não se adaptaram, e a que se deve? Tipo do tecido que não deixa a pessoas respirar bem? Especialmente os tecidos elásticos. Outro ponto, o modelo, o tipo do elástico que machuca a orelha, o tamanho, maior para o rosto, que faz a máscara arriar e as pessoas a colocam na posição pegando na parte frontal e não nos elásticos.

Tem um aspecto danado, nessa falta de adaptação:  a falta de aceitação do óbvio. 

Sabe, dias desses eu fui fazer uma reclamação na academia e ao falar os olhos da atendente brilharam, interpretei que ela havia absorvido a minha queixa, pois a empresa tinha lançado um aplicativo e eu não estava podendo usar por causa do meu cadastro desativado. Pedi, voltei uma semana depois e o cadastro continuava desativado. 

Erguer as sobrancelhas, olhar de lado, os olhos escurecem, ou não têm expressividade nenhuma e etc. Agora é possível observar melhor, mas creio que não ocorra com facilidade, pois estamos ainda presos aos aspectos de observação de antes da pandemia. Um sorriso bonito é sempre cativante, mas muitas vezes ele não chega aos olhos, fica ali mesmo, só nos lábios.

Mas esse amigo que sugeriu este tema, por ser dado a tiradas bem humoradas, disse que agora todo mundo é bonito, pois a máscara esconde a parte feia do rosto. 

Será?

Olhe a fotografia,  veja as diferenças nos olhares.  Se notar,  comente. 

Abração, 
Semana Iluminada.

Marconi Urquiza

Link da fotografia de abertura


sexta-feira, 16 de outubro de 2020

A RAINHA ESTÁ NUA - André do Rap

       

"Quem é o culpado? Naturalmente é o bandido por praticar crimes."

Na última terça-feira acordei querendo escrever sobre a soltura do traficante André do Rap. Os comentários à princípio criticaram o ministro do STF Marco Aurélio Mello e ainda continuam. Depois os comentários foram dirigidos ao relator da matéria, da lei anticrime, que se se desculpou dizendo que não era para soltar traficante ou bandido perigoso ou notório. Depois a crítica foi para o Presidente da República por não ter vetado o artigo 316 do Código Penal.

Agorinha eu pensei no mais artificioso e repetido dilema: "Quem nasceu primeiro, foi o ovo ou foi a galinha?" Quem criou o artigo, quem aprovou, quem não vetou e quem aplicou o artigo em um caso concreto?

Quem é o culpado? Naturalmente é o bandido por praticar crimes.

Ao se colocar o artigo na lei anticrime, eu imagino que o deputado relator e os que aprovaram pensaram em si mesmos. Ouso alegar que eles estavam ressabiados dos abusos ocorridos durante a Operação Lava-Jato. Das prisões preventivas intermináveis para forçar uma delação premiada. Só que a lei, para ser JUSTA, deveria ser aplicadas para todos e neste caso, o dano colateral estourou com a soltura do André do Rap. Segundo notícia do G1, o ministro Marco Aurélio já havia aplicado o artigo 316 do Código Penal em quase 80 casos.

Também se falou que o traficante tem duas condenações em segunda instância e que deveria está preso, não estava por causa de um artigo da constituição que o impede. 

A interpretação, de ontem, do STF, é que a soltura do preso  com base no citado artigo não pode ser automática. 

Creio caber outras considerações:
- Quantas pessoas estão presas com prisão preventiva a mais de 90 dias, cujos processos estão dormindo o sono dos mortos nas gavetas e arquivos físicos ou virtuais dos juízes? Ou do Ministério Público?

Vamos mais:
- E se o solto fosse um bandido chinfrim?
- E se o solto fosse um político sem influência?
- E se o solto fosse um inocente sem recursos?

Nestes exemplos ou outros  correlatos, haveria tanta repercussão?

Nestes dias em que o assunto anda em evidência, eu ouvi outro aspecto dessa quadra de gritas e reclamações. Se não interpretei errado, eu ouvi um entrevistado na tevê dizer que seria demais para a agenda dos juízes tomarem conta de todos os casos de prisões preventivas e também darem conta da agenda "normal". 

Com isto eu pensei em algumas hipóteses:
- Os casos são tão, assim, numerosos que tomaria a agenda dos juízes?
- Se são, assim numerosos, então a organização dos trabalhos está falha? 

Uma coleta sistemática em uma agenda eletrônica dos casos daria ao juiz todos os casos para tratar, - ou isto já faz parte da cultura jurisdicional brasileira, o uso da prisão preventiva e nela permanecer, mesmo quando as provas não são apresentadas ou são insuficientes? 

Mas ontem descobri a razão de se poder tornar a agenda inadministrável para as prisões provisórias, é que ela são 32% de todas as prisões realizadas no Brasil, segundo o secretário do sistema penitenciário de Pernambuco, Pedro Eurico*. Segundo ele, 250 mil presos deveriam ter seus processos revistos a cada 90 dias, até que as suas prisões se transformassem em soltura ou presos condenados. Usando a expressão do secretário: Prende preventiva e deixa o cara mofando na cadeia.

Depois de tantas indagações eu fiquei refletindo sobre todo o contexto. Não vi em nenhum lugar que houve uma motivação extra, do tipo subliminar, para o ministro Marco Aurélio Mello ter decidido sobre a soltura do notório traficante. Mas, sem dúvida, foi a sua notoriedade, o seu poder, a sua capacidade financeira e de articulação é que provocou toda esta discussão. Bandido do baixo clero nem daria aquela coceira discreta no saco.

Outro fator, de minha livre manifestação, é que o que ocorreu foi uma lição para todos. O ministro, pode não ter desejado, mas mostrou que a lei tem falhas, mostrou também que há defeitos no sistema judicial em manter sem nenhum andamento, sem nenhuma atenção, muitas ações criminais, justas ou injustas. Mostrou, querendo ou não querendo, que o assunto merecia atenção das autoridades judiciais e da sociedade, e foi o que ocorreu. 

Revelou, para quem quiser ver, minúcias do sistema judicial criminal brasileiro para que haja uma atenção plena para as execuções penais, pois tem muito preso que deveria ser solto e, estão presos, tem crime que poderia ser punido com penas alternativas de pequeno delitos e há a prisão, compulsória na nossa cultura.  Sem esgotar o tema, realidades que o sistema judicial e o estado brasileiro deveriam cuidar adequadamente.

Enfim, eu torço para que a justiça seja justa e que as imperfeições sejam corrigidas em um processo de melhoria contínua.

Este caso mostrou que a rainha está nua.


Semana Iluminada,
Marconi Urquiza

Noticiário a respeito:

Marco Aurélio mandou soltar quase 80 presos usando o mesmo critério de André do Rap. 

Promotor diz que a fuga de André do Rap era esperada e critica Marco Aurélio

(*) PASSANDO A LIMPO - Parte final do áudio  - Após o minutos 40.

(*) Passando a Limpo, Super Manhã, Geraldo Freire. Rádio Jornal FM, 90.3 - Recife (PE).


sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Cheiro de pão francês







Dia 02, ao passar à noite pela frente da padaria da frente de casa, me surpreendi, ela havia se mudado.  Perdi o cheiro de pão sendo assado que eu sentia do apartamento, quando vento mudava de direção. 

Adoro e evito comer pão.  Gosto tanto de pão que já  comi pão como tira-gosto da cerveja. De pão assado na chapa nem se fala. Do pão faiscando na manteiga, Deus do céu!!!

Tem horas que eu vou na área de serviço e vez por outro sobe do apartamento do andar debaixo o cheiro do pão na chapa e não tem uma vez que não comento com minha esposa: estão assando pão no apartamento do João. 

Tanta afinidade com pão,  francês, principalmente,  me fizeram o favor de comprar uma passagem para a estrada da saudade.

No final dos anos 1960, Delzuite Tenório abriu uma padaria em Bom Conselho.  A farmácia do meu pai ficava a uns 50 metros dela e toda tarde eu ia para lá ajudar nos negócios. 

Depois de um tempo, a simples compra de um pão virou quase um vício,  duas e cinquenta da tarde eu me levantava e caminhava para a frente da farmácia. Lá,  como se tivesse bisbilhotando a rotina lenta da cidade, eu ficava de narinas bem abertas.  Só esperando o cheiro do pão quentinho escorregar pela ladeira e me chamar. 

Quando o cheiro invadia a minha alma, eu saia baixeirinho, naquele galope miúdo e sincopado, para comprar o pão e, ansioso, dar algumas pernadas ligeiras para me debruçar sobre a mesa da minha casa e aproveitar o pão quente derretendo a manteiga.  Dois pães,  vinte minutos,  e eu voltava para a Farmácia Confiança contente.

Tem um detalhe que não sei até hoje: se era pão com manteiga ou manteiga com pão?

Por hoje,  vou de café coado e pão  quentinho. Que tal saborear?

Grande abraço, Semana Iluminada. 
Marconi Urquiza 


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Você se lembra?

 



O expediente se encaminhava para terminar quando Marco Antônio viu se aproximar da sua mesa Genilton, que sentou e puxou conversa. Como faltavam cinco minutos para Marco Antônio dar saída no ponto e ele ficou ouvindo o seu colega falar.

Às vezes gostava de conversar com Genilton, mas quando o assunto era sobre política ou futebol, evitava. Tempos atrás, ao fazer um comentário de uma notícia na internet sobre um político famoso, se surpreendeu com a agressividade do colega, desde então apenas ouvia, quando dava, mudava de assunto. 

Foi o que ocorreu naquela tarde, com o papo sendo chato, sem querer opinar e nem expulsar o seu colega da sua mesa, Marco Antônio estava para fazer cara de paisagem quando sentiu que Genilton havia esgotado os assuntos do momento. Achando que a sua história caberia na conversa de ambos, ele começou:
- Sabe, na semana passada eu recebi aqui no trabalho um xará, Antônio, só Antônio. Ele sentou aí onde você está, se apresentou, melhor, disse que era amigo do chefe. Mostrou o seu álbum de fotografias do seu trabalho. Rapaz, eu estranhei as roupas coloridas.
- De palhaço?, - perguntou Genilton.
- Não. Poderia ser ... – e Marco Antônio parou de falar, pensava.
- De palhaço Marco? Só pode ser.
- Não, de Drag Queen.
- Drag Queen!!, - Genilton falou tão devagar, o estranhamento do exotismo da profissão de Antônio só não foi maior, por que ele via vez por outra um na tevê.
- Pois é. Nem deu tempo de pensar em algo, ela já foi contando o seu problema ...
- Qual problema esse bicha tem? Não é para ter nenhum.
- Mas tem ...
- Ignora, irmão. Ignora.
- Não consegui ...
- Você tem o coração mole. Mole demais.

Marco Antônio olhou para Genilton já arrependido de ter falado, mesmo assim sustentou o olhar de condenação do seu colega de trabalho. Cuidadoso, escolhendo as palavras, falando com um tom de voz ameno, disse:
- Genilton, eu tinha que ouvir. Olha, no estado dele, dez reais para mim não custa nada. Nada. Nada ...
- É que você é rico, mas também é muito besta!

Marco Antônio já tinha resolvido parar aquela conversa com Genilton. Estava procurando a palavra mais educada para interromper o papo, que havia se tornado desagradável, mas de repente Genilton mudou de tom, já crítico, rosnou:
- Você gosta é de bicha! Não é?

Marco Antônio ia levantando, foi quando se lembrou que estava na sua própria mesa. Por muito pouco não disse: “Meu velho, levanta daí que você não é bem-vindo!”

A expressão de Genilton era agressiva, até arrogante. Marco Antônio viu, mas fixou o pensamento em uma conversa diferente daquela.

Esperando uma resposta ríspida, que não veio, Genilton, ao não ver alimentada a sua vontade de brigar, relaxou, nisso Marco Antônio voltou a falar:
- Genilton, dia desses um cliente sentou na minha frente e começou a conversar.
- Eu sei, você tem paciência.
- Aí esse cliente me pediu socorro. Não tinha forças para subir essa escada.
- Lá vem você com seu coração bondoso, - disse Genilton, irônico.
- Eu chamei Zezé e ele desenrolou, - desta vez não houve réplica. 
Marco Antônio continuou:
- Sabe, um mês depois ele voltou, mas dessa vez não pediu ajuda.
- É capaz de ser o tal de Drag Queen.
- E ele contou uma história linda. Disse que um dia estava na aula quando uma colega chamou parte da turma para rezarem juntos.
- Agora vem você com religião.
- Pois bem, ele disse que durante mais de mês ele rezaram no intervalo do recreio a favor de um colega, que ele não tinham tanta intimidade.
 
Nesse momento, Genilton tinha parado de se mostrar irritado e prestava atenção.
 
- Sabe, Genilton, eu fui ficando acanhado com a fé dele. Teve uma hora que eu disse que não era de rezar e ele disse, sorrindo: “Olhe, não se preocupe, eu rezo por você e por mim”. Sabe, eu dei um sorriso chocho. Chocho demais. Nisso ele já tinha se levantado e foi no cafezinho, quando voltou veio trazendo um para ele e outro para mim. Tomamos, então perguntou: Onde eu estava?
- Falando da oração para o colega, - respondeu Genilton.
- É verdade. Foi quando ele disse que quase dois meses depois, aquele colega voltou curado e depois de uns quinze dias ele se aproximou do rapaz e disse a ele: “Nós rezamos toda noite quando você estava em doente.”

As rugas de contrariedade que existiam no rosto de Genilton foram suavizando, ficaram apenas as dos anos, então ele deu uma fungada e disse:
- Era para mim. Esse homem é o Drag Queen?
- É.
- Eu não agradeci. Onde ele está?
- Morreu ... estava bem doente. Pegue esse papel, ele deixou esse poema que um amigo havia feito naquele tempo.

Genilton pegou, desembrulhou o papel amarrotado como quem abre um pacote de pão e se pôs a ler:
Muitas vezes nos
damos por vencidos
ao ouvirmos
de alguém um
diagnóstico.
Porém Deus nos
prepara o prognóstico
Atendendo com amor
nossos pedidos.
Os problemas são
todos removidos (no áudio errei e gravei resolvidos)
quando a fé se torna
cristalina.
E a resposta que
vem da mão divina
nos devolve por inteiro
as emoções.
Ao notarmos que
nossas orações
Alteram as razões da
medicina.
Genilton baixou o olhou e viu: 
Ass. Ademar Rafael Ferreira
 
Então Genilton olhou para Marco Antônio e apenas disse:
- Não sei o que dizer.
- Depois que ele saiu de vez da vida, eu só penso nele assim: Meu amigo, um certo Antônio, - falou Marco Antônio.
- É, - disse Genilton, e o silêncio se fez ouvir.


Grande abraço, Semana Iluminada
Marconi Urquiza

O poder revela ou transforma uma pessoa?

  imagem: Orlando/UOL.            Um papo na última segunda-feira entre aposentados do Banco do Brasil que tiveram poder concedido pela empr...